quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Quando os lobos falavam...

Sobreviver com Lobos, de Véra Belmond



... e faziam a saudação nazi. Fábula do capuchinho vermelho ao contrário, reinventada por uma menina, em fuga do Holocausto



Nos tempos que correm, é mais fácil um lobo povoar um imaginário infantil do que uma floresta. É mais simples para um humano sobreviver com um lobo do que um lobo sobreviver junto dos humanos. Mas enfim, esta história, a do filme Sobreviver com Lobos (estreia-se hoje, quinta-feira), realizado pela francesa Véra Belmond, passa-se durante a Segunda Guerra Mundial, em que os lobos usavam uniformes com suásticas e ladravam: Heil Hitler! E quando o homem é o lobo do homem, o papel do vilão não sobra para estes pobres predadores de rebanhos, uivadores de quatro patas. O filme segue esta peregrinação solitária de uma menina belga e judia, através das florestas nevadas da Europa, a calcorrear fronteiras, da Bélgica até à Alemanha e à Ucrânia, em busca dos pais, levados pelos alemães para um campo de concentração na Polónia. Cheia de fome, frio e susto, a menina sobrevive graças à benevolência de uma alcateia de lobos (que não só não a come, como lhe dá de comer: lebres cruas e essas coisas que os lobos comem...). Seria quase enternecedor, este remake da menina-lobo em versão holocausto, se não fosse tão candidamente primário ou ingenuamente infantilizante. Apropriado, apesar de tudo, para matinés domingueiras ou para passar no canal Disney, nas sessões nocturnas.

Pura invenção
Porventura, o grande interesse deste filme está menos no que se avista no ecrã e mais no que se esconde por detrás. Misha Defonseca, a suposta menina-lobo belga, escreveu, já sexagenária e residente nos EUA, esta história que garantia autobiográfica. Publicado há cerca de 11 anos, o livro foi traduzido em 18 línguas, tornou-se um best-seller e garantiu à autora um milionário pecúlio. Há cerca de um ano, quando o romance se tornou mais conhecido na Europa e se estreava em França o filme, começaram-se a elencar, nos jornais, uma série de incoerências históricas e lógicas. Qualquer semelhança com a realidade era... pura invenção. Para começar, a autora nem se chama assim: Monique Dewael é o seu nome verdadeiro. Depois, não era judia (converteu-se tardiamente), foi criada numa família católica de quem nunca viveu afastada. Enquanto ela se descrevia desamparada, gélida e famélica, a sobreviver com os lobos numa floresta escura e gelada, antigos colegas seus da escola de um subúrbio de Bruxelas, lembram-na abrigada, com o conforto possível (estava-se em guerra), na melhor moradia da terra. Por fim, nem existem na Europa esta espécie de lobos, todos brancos de pêlo longo, como os do norte da América. Aqui, os canis lupus são pardos, bastante menos atraentes para as inspirações infantis, ou para os castings cinematográfico. Perante as evidências, Misha, aliás Monique, reconheceu o embuste, pedindo desculpa «a todos os que se sentiram enganados». A verdade – agora mesmo a verdade – é que a sua infância pode ter sido menos selvagem, mas foi igualmente dramática. O pai era membro da resistência belga. Capturado e denunciou à Gestapo a identidade dos companheiros. Tornou-se colaboracionista, participou nos interrogatórios que conduziram à tortura e à morte em campos de concentração de muitos resistentes belgas. Em troca, os alemães pouparam-lhe a vida, e convidaram-no a viver na Alemanha, onde morreu, durante guerra, de causas naturais. Monique passou a viver com os avós e os tios. Chamavam-na «a filha do traidor». E talvez a história dos lobos tenha começado a forjar-se aqui, quando imaginava a sua vida longe dos homens. «Adorava lobos e entrei no seu universo, já não sabia o que era verdade ou o que era o meu universo interior». A história do livro é sua, o que é muito diferente de dizer «a» sua. «Coloquem-se no lugar de uma menina de 4 anos que perdeu tudo». O que ela sempre quis, garante, foi exorcizar o seu sofrimento. E bem que podia acontecer, nestas fases em que os humanos se animalizam – humanizarem-se os animais. Só para equilibrar as coisas.

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