terça-feira, 22 de abril de 2008

Eu é que sou o presidente... da estação!

Califórnia Dreamin’, de Cristian Nemescu



É um bocado como o poema da asa de uma mosca entalada num turbina da central e ... falta a luz numa cidade inteira. Esta é a história de um chefe de estação de comboios, num vilarejo da Roménia profunda, que faz estacar uma artilhada coluna de marines americanos. Eles são os donos do mundo, até podem ser, mas é Doiaru o dono da estação. O caso foi verídico, diz-se. Um funcionário com excesso de zelo, numa obscura terriola romena, empatou durante dias um pelotão americano, em trânsito para o Kosovo. Porque o batalhão não dispunha da respectiva, devida, correspondente e necessária... documentação. Califórnia Dreaming’, é a primeira e última longa do romeno Cristian Nemescu, cuja curta carreira (morreu num acidente de viação em Bucareste, antes de finalizar a montagem do filme) foi coroada com o Prémio Un Certain Regard, em Cannes, em 1997, no mesmo ano em que um outro Cristian, o seu conterrâneo Mungiu venceu a Palma de Ouro, com 4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias. O cinema romeno também foi um bocado como a asinha da mosca, ou como o obstinado chefe de estação: só que o estorvo aqui não provocou nenhum apagão, mas fez iluminar uma geografia cinematográfica inteira.

Em destaque na programação do Indie 2008, o cinema romeno vem provar que as manifestações culturais daquele país são muito mais do que o Maria heeeeeeeeeee, Maria huuuuuuuu que inundou as rádios num destes verões. De repente, uma nova fornada de realizadores romenos assinalou um vibrante ponto no mapa europeu. E tornou-se numa das mais gratas revelações dos últimos tempos. É uma lufada de ar fresco na cinematografia europeia, a provar que os milagres existem, e que se pode, um belo, dia despertar de um coma profundo, inculcado pelo totalitarismo à asiática de Ceausescu. Não há vaga nem movimento, nem não existe nenhum manifesto, nenhum sentido programático, nenhum fundo teórico ou estético, insistem os realizadores. Pode não haver, mas há algo em comum em todos os filmes estreados em Portugal (4,3,2 de Cristian Mungiu, um retrato sombrio sobre o tráfico de «abortos» na Roménia despigmentada de Ceausescu; A Morte do Sr Lazarescu, de Cristi Puiu, uma espécie de on the road, quase em tempo real, a bordo de uma ambulância, pelo, mais dantesco que lazarescu, sistema de saúde pública romena; O 12:08 a Este de Bucareste, de Corneliu Porumboiu, onde num amador programa de TV regional, se escarnecem dos ímpetos históricos pouco revolucionários dos romenos; e finalmente Califórnia Dreamin’).

Num estilo mais ou menos realista, todos eles reflectem um olhar desassombrado sobre o próprio país, sem a miopia da distância, nem o astigmatismo da proximidade. Sem a distorção da causa própria. Mostram a imensa capacidade de se rirem de si próprios, de ironizarem, de serem cáusticos, de se rirem com os vícios do sistema e até com a própria desgraça. Aliás, foram os romenos que inventaram a mais fenomenal das palavras: râsu-plansu. Em português seria qualquer coisa como «chorir» - se alguma vez nós nos tivéssemos lembrado de inventar uma palavra para «rir e chorar ao mesmo tempo», ou para «gozar com a própria desgraça». Os romenos usam-na quando as coisas estão tão mal que já só vale a pena rir. O que demonstra não só a elasticidade linguística, como uma capacidade muito romena de conciliar contrastes, de sintetizar paradoxos, e de se equilibrar num ponto de viragem da história, vindos do totalitarismo (em 1989), a caminho da união europeia (desde 2007).

De volta àquele modesto apeadeiro, no meio da Roménia, onde todos, desde o presidente da Câmara, até aos grevistas da fábrica ou às raparigas da terra se querem fazer valer daquele bando de americanos ali tão à mão. É o Chico-espertismo exportado para estas eslavas paragens de latinas palavras. O oportunismo, a subserviência interesseira, a deferência saloia para com os americanos. Por isso, Califórnia Dreamin’, o hit dos Mamas and Papas que acompanha as finais cenas do filme, é todo ele uma parábola de um país, onde o deslumbramento pró-americano se cruza com alguns ressentimentos históricos. O chefe da estação é um burocrata, que não se deixa seduzir pelo poderio dos militares nem dos secretários de estado chamados ao terreno, com um conflito diplomático e bélico à perna, mas também é um tiranete local. O Presidente da câmara é um interesseiro untuoso, as mulheres são calculistas, os habitantes em geral manipuláveis pelos vários interesses em jogo. Os americanos, esses deixam-se levar pelo seu proverbial desconhecimento da vida além-américa. E reiteram na tradição de abandonar o local do crime, depois de semeada a discórdia.

O filme pode ser inacabado, o realizador não teve tempo de lhe limar as arestas na montagem. Pode-se imaginá-lo melhorado, expurgado de algumas cenas excedentárias (nomeadamente o boy meets girl final). Ou mais apurado, a história é demasiado boa para admitir bocejos, mas não deixa de criar uma certa sensação de enfartamento. Pode parecer até um pouco atafulhado de mini-enredos, desviando-se a atenção do plot principal. Mas Doiaru (Ravzan Vasilescu), no seu enfado constipado, poço de contradições e paradoxos (como o país que o fabricou), ora um cordial e hospitaleiro cozinheiro, ora sinistro mafioso, é mesmo uma grande personagem. Interessante vai ser ver, agora, na programação do Indie, a anterior curta de Nemescu, onde embora se transite para uma história de iniciação sexual adolescente, já se lhe reconhece o olhar sarcástico e o palpitar citadino, à janela dos amantes. Confuso? Só mesmo vendo...

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