quinta-feira, 20 de setembro de 2007

Uma pequena luz bruxuleante

Luzes no Crepúsculo, Aki Kaurismaki




«Como foi a prisão? «Não se podia sair. As portas estavam fechadas». Luzes no Crepúsculo do finlandês Aki Kaurismaki é o sol da meia-noite desta rentrée

Chaves, códigos de barras, combinações electrónicas de acesso, portas fechadas, corredores vazios, monitores de vídeo-vigilância, luzes na escuridão das ruas – e eis um grupo (serão sem-abrigo?) que passa a beber vodka e a discutir literatura russa: Tolstoi, Pustkin, Gogol, Tchecov... É também neste (des)concerto que se joga a singularidade do famoso realizador finlandês Aki Kaurismaki, que com Luzes no Crepúsculo (estreia em Portugal no início de Outubro), encerra a sua triologia urbana sobre os excluídos do costume, os falhados, os perdedores, os sem-emprego, os sem-esperança, os sem-pontos de fuga, os sem-abrigo, os sem-amor, os sem-auto-estima, os sem-memória. O seu anterior filme, O Homem sem Passado (2002) ganhou a Palma de Ouro em Cannes e foi nomeado para os Óscares de melhor filme estrangeiro. Aki, que passa os Invernos na sua casa em Portugal, não quis comparecer à cerimónia. Também Luzes no Crepúsculo foi seleccionado para a corrida aos Óscares de 2007, mas ele rejeitou a nomeação, como protesto contra as políticas seguidas por Bush. Já antes, em 2003, tinha boicotado o New York Film Festival, por solidariedade ao amigo e realizador iraniano Abbas Kiarostami, a quem foi recusado o visto. Mas antes deste desvio através destes traços bastante atraentes da personalidade do autor, estávamos nos desajustes (chamemos-lhe assim) da sua obra. Nos três homens que passam desprevenidamente por uma rua escura a discutir literatura russa – o que até pode parecer pretensioso mas, em Aki, resulta com uma naturalidade desconcertante. E, mais adiante, há-de ver-se uma femme fatale, à filme negro americano, a aspirar a casa, ou as ruas gélidas (mas sem neve) de Helsínquia ao som dos tangos de Gardel...

Com uma precisão quase cirúrgica e um sentido de economia absolutamente notável (no final ficaremos surpreendidos como aconteceram tantas coisas em apenas 78 minutos) Aki apresenta-nos, em poucos frames, em algumas curtas cenas e raríssimas palavras, a personagem principal, um segurança que faz os turnos nocturnos de um centro comercial. Bastam as chaves, os códigos, os seus passos nos corredores vazios, alguns olhares, o desprezo e a indiferença dos colegas, o ar lúgubre dos balneários com os seus cacifos, o confronto com o chefe de turno que, apesar de trabalhar com ele há três anos, faz questão de não se lembrar do seu nome. «Como te chamas?» «Koistinem, como sempre»... Já não restam dúvidas: estamos no território da solidão.

E se a solidão tivesse cor teria este tom azul-chumbo que o realizador escolheu para este filme. É um filme estudadamente mono-cromático, com uma composição quase aritmética, às vezes de enquadramentos claustrofóbicos de tão perfeitos e fechados. O azul-chumbo do crepúsculo, das fardas, das paredes, dos cacifos, do asfaltado dos passeios, dos ecrãs da vídeo-vigilância, da penumbra dos bares repassados pelo fumo dos cigarros... (todos fumam imenso, todos bebem imenso). Koistinem circula pela cidadela evacuada em que se torna o centro comercial depois do anoitecer, um espaço todo ele povoado de ausências. Vagueia pela espessura opaca das suas rotinas. Anda entre as ruas nocturnas e desertificadas de Helsínquia, onde são vultos todos os homens. Move-se num mundo de hostilidade. E também ele tem uns olhos, não acidentalmente, azul-chumbo.

Aki Kaurismaki diz que para fazer os seus filmes segue dois métodos: ou segue o guião ou improvisa. «Mas apenas eu improviso – não o câmara nem os actores. Apenas eu». Desde muito cedo se apercebeu que não iria fazer obras-primas: «Então decidi fazer uma série de filmes decentes». Este pode ser menos que obra-prima mas está, obviamente, muito acima da decência - e da modéstia do realizador.

Toda a gente do filme de Aki traz uma sombra acoplada. Todos nós trazemos (excepto ao meio-dia e, uma vez, o Peter Pan), mas nos filmes não costumam aparecer, pelo menos não da forma como surgem em Luzes no Crepúsculo, como se o realizador estivesse sempre a prevenirmos de que todas pessoas (mesmo as boas) levam um monstro em si suspenso, nas palavras de Sophia, que pode não ser visível, mas está lá, submerso, como um fundo do mar.

São pessoas sem dentro, só com fora. Pessoas descarnadas, como sombras ou fantasmas. Por isso, quando saem do enquadramento, a câmara continua a filmar a sua ausência nas cadeiras vazias, nos copos de cerveja que ficaram por beber, enquanto os seu donos se ausentam para ir lá fora, num instante, espancar Koistinem.

E Koistinem é um tipo falhado. Quando não ignorado, é desprezado. Quando não enxotado, é humilhado. E espancado. O gerente do banco a quem se dirige para pedir um empréstimo pergunta-lhe se ele é um comediante e escorraça-o a toda a pressa. Mas não inspira compaixão, ao contrário do cão rafeiro atado a um poste durante uma semana sem água - que o segurança até tenta salvar com mais sentido de dever do que de pena. Não inspira compaixão nem grande admiração, ele é um tipo ingénuo, perdedor, está no meio termo entre o desistente e o resignado. E no entanto, não há dúvidas: ele é um herói. Embora não sejam óbvios os mecanismos pelos quais se manifestam os processos da nossa identificação com a personagem. É estranho. Talvez a chave resida na sua estranha forma de não vergar, apesar de tudo. Ou de não denunciar - seja por fraqueza, temor, amor ou orgulho. Ou no seu olhar azul-chumbo e nessa pequena luz bruxuleante de que mais adiante falaremos.

E de repente, esta personagem da vida real, desta Helsínquia civilizada, opressiva e crepuscular (sem sequer a complacência branca e purificadora de um nevão), cai num plot de filme negro americano. Seduzido por uma mulher fatal, loura platinada de olhos equívocos, como um anjo azul, que se serve dele como anzol para um assalto. Aki traz a realidade para dentro dos filmes; e os filmes para dentro da realidade – e aqui se mistura a visão do mundo e a visão do cinema. Koistinem vai parar à prisão. Dos cacifos balneários para outros cacifos humanos. «Como foi?», pergunta-lhe a dona da roulotte, onde ele vai comer no final dos turnos, a sua única âncora afectiva. «Não se podia sair. As portas estavam fechadas».

E, neste país do sol da meia-noite e da noite das duas da tarde, onde estão, afinal, as luzes que anuncia o título? Estão lá, mais para o final. Bruxuleantes, como no poema de Jorge de Sena. Umas luzes de esperança, apesar de tudo ou contra tudo. Que vacilam, não crepitam nem iluminam. Apenas brilham. «Tudo é incerto ou falso ou violento: brilha»

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