quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Assim se vê a força do LGBT

Milk, Gus Van Sant



Tem os seus momentos agit-prop, a liderança de Sean Penn e a palavra Óscar estampada na testa. No filme-bandeira Milk, com 8 nomeações, o estandarte hasteado leva as cores do arco-íris




«Olá, o meu nome é Harvey Milk e quero recrutar-vos». Não é grande coisa como sound byte de discurso. Nem é nenhum slogan arrebatador como o Yes We Can de Obama, ou o I Have Dream de Martin Luther King. Também não tem a força de refrão do I’ll Be There do Henry Fonda, em Vinhas da Ira. Mas para o pequeno político improvisado que foi Harvey Milk era o que se podia arranjar. Desta forma, o líder gay iniciava os seus discursos e quebrava o gelo das audiências. «Quero recrutar-vos».

E a verdade é que fartou-se de recrutar gente, de minoria silenciosa, até maioria ruidosa, no bairro Castro em São Francisco, epicentro do maior movimento gay dos EUA. Milk (estreia-se), de Gus Van Sant, nomeado para oito Óscares, entre eles quatro dos principais (Melhor Filme, Melhor Realizador, Melhor Argumento Original e Melhor Actor), é um convencional biopic à maneira de Hollywood. Com recursos estilísticos óbvios, como a voz-off narrativa de Harvey que faz um resumo das cenas passadas, para um gravador, antecipando a morte. E os respectivos intercalares com flash-backs. Sem evitar o sentimentalismo mais piegas, ao usar Puccini e o salto para a morte de Tosca, como um prenúncio trágico, mais do previsível, da eminência do seu ocaso. Milk foi assassinado antes de completar 50 anos. Durante a sua vida de activista gay esteve exposto a todo o género de ódios homofóbicos, e de conservadorismos acéfalos, mas a verdade é que não era nenhum Malcom X. Estávamos nos anos 70, em pleno rescaldo pós-hippie, o estilo de vida-easy rider não era ainda uma extravagância. E sobretudo estávamos em S. Francisco, a cidade mais liberal da costa oeste. Ou, pelo menos, ganhou essa aura, depois do hit de Scott Mckenzie: «If you're going to San Francisco/ Be sure to wear some flowers in your hair».

Milk foi morto, afinal, pelo perverso sistema de um país que permite que qualquer destrambelhado use um arma. E um colega, político como ele na câmara de S. Francisco, deu-lhe, num acesso de desvario, um par de tiros.

S. Francisco foi o seu campo de batalha, depois foi o seu sepulcrário. Tornou-se o seu santuário. Todas as causas precisam do seu mártir. E Harvey Milk é um mártir gay, figura venerada pelas comunidades GLTs internacionais, colocado num pedestal. Chegou a ser considerado uma das personalidades mais influentes do século XX pela revista Time. Nem é esta a primeira vez que cai nas graças da Academia. Já em 1985, um documentário sobre a sua vida, The Times of Harvey Milk, ganhou o Óscar da categoria.

Eu é que sou o presidente da junta
Milk não entrou para a história americana por ser um político homossexual. Nisso parece não haver originalidade nenhuma. Entrou para a história por ser o primeiro político eleito homossexual assumido, o que faz toda a diferença. E a história do filme começa justamente aqui, no dia dos seus 40 anos, quando Harvey (Sean Penn), sai da claustrofobia do armário de que os homossexuais sempre falam. Subitamente inspirado por um engate de ocasião (James Franco) que se torna no seu amante mais consistente, e por um daquelas epifanias de balanço de vida. Não é só o armário que fica para trás, também o emprego burocrático numa companhia de seguros. O casal instala-se em Castro, um bairro de classe média trabalhadora, em São Francisco e monta uma loja de fotografia, de intuitos comerciais algo obscuros, e não explorados pelo filme. A hostilidade dos comerciantes da zona rapidamente é ultrapassada pelas potencialidades lucrativas daquela clientela. Inimigos, inimigos, negócios à parte... Rapidamente, Milk demonstra a capacidade mobilizadora dos homossexuais unidos jamais serão vencidos. E descobre os seus dotes oratórios, como o seu «Olá. Eu quero recrutar-vos». A loja de fotografia torna-se quartel-general da campanha de Milk à assembleia de supervisores do município. E também, caserna de animação non-stop, nocturna e diurna. Algumas derrotas depois, Milk chega a supervisor (o equivalente a vereador da câmara). Mais do que homossexual assumido, ele é um político como os outros. Faz propaganda, alianças com os grupos tão insuspeitos como os camionistas, usa a retórica e a demagogia. Arranja causas tão populistas como apanhar excrementos de cão na rua, para captar eleitores. Negligencia as suas relações, chega tarde para jantar. O amante, companheiro de início de aventura, sente-se trocado pela política. As sucessivas Mrs Milks também são infelizes. A última, protagonizada pelo tão histriónico Diego Luna, suicidou-se, depois da refeição esfriar em cima da mesa.

Nestas lides políticas, Milk conhece jovens muito militantes, como Cleve Jones (Emile Hirsch). E gente importante como o Mayor, que se rendem à sua popularidade (ou antes, aliam-se a ela). E também os seus opositores, políticos ferozmente reaccionários, senhoras religiosas, e outros figuras fora deste tempo. Consegue derrubar a inacreditável lei que impedia os professores homossexuais de darem aulas, não fossem as más influências. Mas o seu maior poder de mobilização, aconteceu mesmo no dia da sua morte, com uma impressionante procissão nocturna de 30 mil pessoas, de velas nas mãos, a percorrer as ruas de S. Francisco.

Apesar de ser um projecto antigo – Desde 1992, que Gus Van Saint pensa neste docudrama - o filme acabou por estrear nos EUA, numa fase crucial em que se baniu os casamentos gay na Califórnia. Mesmo post-mortem, em nome de Milk a luta pelos direitos cívicos e homossexuais prossegue. A estreia foi aproveitada para o movimento No Milk for Cinemark, que apelava aos LGBTs que não fossem ver o filme nesta cadeia, já que o seu presidente, Alan Stock, terá doado 10 mil dólares para a campanha da aprovação da Proposta 8, opositora da união gay.

Em Portugal, Milk surge numa altura em que nas visitas íntimas das prisões são admitidos os casais homossexuais e volta para cima da mesa a discussão dos casamentos homossexuais.

Do ponto de vista cinematográfico, Milk é a desilusão da temporada. E se tudo, no dia 22 de Fevereiro, se vai decidir entre o infantilizado O Estranho Caso de Benjamim Button (13 nomeações) e o mainstreamizado Milk (oito), a 81ª edição a bordo do Kodak Theatre promete ser a mais enfadonha dos últimos tempos. Sobretudo por contraste com a frescura introduzida na cerimónia dos Óscares 2008, por filmes tão especiais, como Haverá Sangue de Paul Thomas Anderson ou Este País Não é para Velhos, dos irmãos Cohen. Valha-nos a esperança em Slumdog Millionaire (10), a verdadeira revelação desta lista de nomeações.

De facto, não era preciso que Gus Van Sant fosse transgressor ao ponto a que chegou Todd Haynes, em Eu não Estou Aí, na sua uma biografia livremente heteronomística de Bob Dylan. Mas não se esperava que o realizador de filmes tão atmosféricos e esteticamente estimulantes, como Elephant (2003), Last Days (2005) ou Paranoid Park (2007), se obrigasse a tantas cedências ao mainstream multiplex e ao politicamente correcto. Poucas heranças se notam destes seus últimos filmes sempre tão opacos, impressionistas e experimentais. Talvez só alguns efeitos sonoros e a utilização de câmara semi-profissional de 16mm, que dá um ar muito caseiro e realista aos ambientes seventies, aliás cuidadosamente reconstituídos. Isto e a magnífica representação de Sean Penn são os grandes trunfos do filme. Fazer de embriagado ou de homossexual afectado deve ser fácil para um actor cabotino que se serve dos tiques amaneirados como bengala. Não para Sean Penn, que conseguiu um compromisso subtil e contido, discretamente efeminado, próprios dos actor grandes. Sean usa uma prótese no nariz, dentes postiços, lentes de contacto e um penteado que faz concorrência ao Javier Barden, em Este País..., no pódio do pior penteado da história do cinema. Jos Brolin, o tal político confuso, que põe um ponto final na biografia de Milk, naquela crise assassina, também se revela um actor mesmo muito promissor (está nomeado para actor secundário). Embora não supere o nível do cow-boy que interpretou em Este País... ou o ex-presidente Jorge Bush que protagonizou em W, de Oliver Stone.

Convencionalista, integrador dos clichés do género tão cultivados em Hollywood, a apelar à lágrima fácil (chega-se o ponto de acenar com o drama dum rapazinho gay e paralítico), demasiado preso à realidade dos factos, talvez Milk sofra do problema de muitos biopics: a preocupação excessiva em se ser respeitoso para com a personagem retratada e, na verdade, homenageada. Isso fez de Milk um filme excessivamente bem comportado, branqueado e obsequioso. Aquilo a que os americanos chamam um «easy-to-love movie». Harvey Milk que se batia pelas liberdades cívicas, merecia outro grau de emancipação. Ou de loucura. Ainda por cima ele até tinha sentido de humor. Auto-intitulava-se «a rainha número um». E no exercício das suas funções de corta-fitas, uma vez disse: «Sou o único político que a seguir a cortar uma fita tem vontade de a colocar na cabeça». Uau!

1 comentário:

Luis Campos disse...

Bom blog!

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