quinta-feira, 6 de março de 2008

Cães de louça

Lobos, de José Nascimento


É outra vez a história de um naufrágio, como em Tarde Demais (2000), o anterior filme do realizador José Nascimento, sobre o caso verídico de um barco de pescadores que se afunda no Tejo, com terra à vista. A sua terceira longa, Lobos (estreia-se na próxima quinta, dia 13), também começa no pós-tragédia. Quando as personagens embarcam, já vai o bote entornado. Escusado tentarem remar em frente, que a única direcção possível é o fundo. Ou ousarem manter-se à tona, que não há bóia de salvação que lhes valha nem colete que lhes sirva. A história de um afundamento – só que em terra firme. O naufrágio – mas completamente seco. Lobos é um road-movie, que acompanha o périplo de dois náufragos da estrada. Eles são um casal improvável, incestuoso, à beira do afogamento, com a consanguinidade e um crime às costas: O tio de meia idade e uma sobrinha de 16 anos. Ele, Nuno Melo, e ela, Catarina Wallenstein – e desde há dez anos, com Ana Moreira, em Mutantes, que não havia uma estreia tão auspiciosa no cinema português.

Pele de cordeiro
Mas por enquanto seguimos um tio e sobrinha de película, nesta travessia inútil. Na primeira parte, eles são fugitivos no asfalto, viajam de carro, e de carrinha, e de camião TIR, e de Jipe pelas estradas do Norte. E José Nascimento convoca todo um catálogo estilístico associado às tão cinematográficas fugas on the road: o tremor da câmara articulado ao do motor no início do filme; os faróis que batem nos traços brancos da estrada; a banda sonora seleccionada a partir do auto-rádio; as transparências das árvores nos vidros laterais do carro; os reflexos de um céu enublado; o movimento do pára-brisas que à passagem «desturva» a imagem dos protagonistas...

Na segunda parte do filme, de automobilistas passarão a peões, a monte pelas serranias, onde os lobos uivam e a neve lhes atasca os passos. São uivos que se escutam ao longe, mas é humana a alcateia que se afasta das povoações e devora uma perna de carneiro morto. E ao contrário de Tarde Demais, cada vez menos temos a certeza de que estes náufragos queiram ser salvos.

Antes da «lobinização» em curso, ainda há-de aparecer um bordel onde pontifica um cão de louça, uma beldade brasileira que «não tá nem aí», Ivone, «chefe» das prostitutas e ex-grávida abandonada vai para trinta anos (Maria João Luís), um filho que quer conhecer o pai (Francisco Nascimento), um polícia equívoco (Pedro Hestnes) e dois amigos pouco colaborantes (Vítor Norte e Adriano Luz) – e com estes quase que se completa o elenco meio submergido de Tarde Demais.

Numa cena filtrada pelo pára-brisas, um não diálogo a dois: Ele, um enfurecido Joaquim, (Nuno Melo) a dizer «é sempre a mesma coisa, não se pode confiar em ninguém» e, noutro comprimento de onda, Vanessa (Catarina Wallenstein) a responder-lhe «e se fossemos para Paris?». Continua ele: «É sempre a mesma coisa». E ela a retribuir-lhe com chapéus, vestidos e torres Eiffels... E esta, que é provavelmente a melhor cena a dois do filme, vem aqui, de propósito, para reintroduzir Catarina Wallenstein, 21 anos (Prémio Jovem Talento no Festival do Estoril), que, por acaso, foi mesmo viver para Paris. Depois do liceu Francês, das aulas do Conservatório (ainda incompleto), e desta primeira experiência a sério no cinema, Catarina estuda, como estagiária estrangeira (cinco vagas para todo o mundo), no Conservatoire Supérieure d’ Art Dramatique. Em paralelo, tem aulas de canto clássico: «Quero estudar muito. Ser actor, ultrapassarmo-nos a nós próprios, é um trabalho infinito. E continuo a levar o estudo de canto muito a sério. Serei uma actriz completa». Catarina estuda música desde os cinco anos, começou pelo violoncelo (o pai é contrabaixista e irmão do actor José Wallenstein), mas o que lhe dava mesmo mais prazer era o coro (a mãe é cantora lírica). Participou em vários coros infantis do S. Carlos, adora ópera e Puccini, mas não gosta de «mitificar». «Não me quero auto-policiar demasiado, tenho de aceitar que o caminho se faz lentamente». Catarina é daquelas raras actrizes que tem o imenso talento de, neste filme, proferir frases banais, no tom certo, sabendo-se que bastava meio tom abaixo ou acima para as tornar forçadas ou ridículas. «Claro que quando revejo o filme (e cada vez gosto mais dele) penso que há milhões de coisas que podia ter feito de maneira diferente. Isto da representação tem a ver com a luz que está nesse dia, com o que sentimos, com as nossas memórias... E em poucos meses podemos aprender tanto... O que eu sei é que naquela altura fiz mesmo o melhor que sabia e podia», comenta Catarina. «O filme possível», foi também assim que José Nascimento classificou Lobos, na sessão de ante-estreia. Antes disso, já Paulo Branco arrazoara sobre a inconsistência cultural do país, sobre o «culto da mediocridade», sobre o «célebre» pivot da RTP, agora muito em voga nos meios literários, que uma vez lhe disse que as peças sobre cinema não se deviam passar no telejornal, «porque na BBC também não passavam». Paulo Branco respondeu-lhe, na altura, que a BBC também «não passava peças de futebol»... E continuou a sua pródiga indignação contra a ausência de políticas culturais, a ausência do ministro da cultura naquela sessão, a ausência de jornalismo de investigação. «Pior estão os realizadores», respondeu-lhe José Nascimento: «Têm de resistir a tudo isto e ainda... aos produtores».

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