terça-feira, 5 de janeiro de 2010

O deus das pequenas coisas

O Sítio das Coisas Selvagens, de Spike Jonze







No novo filme de Spike Jonze abre-se um portal directamente para dentro da cabeça de um miúdo de nove anos

Há uma parte no documentário As Praias de Agnés em que a realizadora francesa - a propósito de uma senhora tão octogenária quanto ela, mas com a memória algo fracturada - reivindica o direito a divagar. Aliás, o seu último filme é um bocado isto: uma digressão pelas curvas e outras circunvalações da mente. O direito a divagar, a ser estupendamente incoerente, delirantemente imponderado, inconsequentemente derivativo. Um misto entre liberdade e insubmissão a que só temos direito, com toda a legitimidade possível, duas vezes na vida: Quando se tem muito passado por detrás, como é o caso de Agnés; Ou quando se tem muito futuro pela frente, como é o caso do pequeno Max, do filme O Sítio das Coisas Selvagens (estreia-se dia 4 de Janeiro), realizado pelo também indomesticado Spike Jonze.


Baseado no minimalista e muito bem ilustrado livro, de 1963, que se tornou num clássico dentro do universo infantil anglo-saxónico – Where de the Wild Things Are, de Maurice Sendak o filme expande a história de um menino vestido de lobo muito indisciplinado, que faz uma birra, é mandado para o quarto e evade-se num barco para um mundo cheio de monstros e coisas selvagens. Depois passa-lhe a birra, regressa e come o jantar.


Quem pensa que este é um filme para crianças, engana-se. Quem pensa que este é um filme para adultos, engana-se também. E quem ainda estranha que, depois dos magníficos guiões de Charlie Kaufman, em Queres ser John Malkovitch? (1999) ou Inadaptado (2002), Spike Sonze tenha transitado para um clássico infantil, bem pode entranhar: O Sítio das Coisas Selvagens é um item perfeitamente lógico na filmografia de Jonze. O que lhe interessa, mais uma vez, é imergir em universos paralelos e alternativos, saltar para dentro de tocas de coelho branco, onde vigora os mais absurdos códigos legislativos. Seja dentro da cabeça de John Malkovitch, seja dentro desta ilha habitada por monstros esquisitos e selvagens. No delirante filme de 1999, um grupo descobre, num meio-andar onde só se anda curvado, um portal que vai ter directamente à cabeça do actor Malkovitch. Aqui, Jonze desvenda o que vai na cabeça de um miúdo de oito anos. O que é igualmente fascinante. Porque dentro da cabeça de um miúdo de nove anos existe a nossa última ração de saudável incoerência e de indomável selvajaria. É uma espécie de liberdade condicional, vai durar pouco, não tarda nada já estamos socialmente aptos e formatados. Já só poderemos voltar a ser um bocadinho loucos lá para os setenta anos.

Terra do nunca
O filme abre com uma sequência, cheia de música e ritmo, em que Max vestido de lobo (numa interpretação comovente de um outro Max actor: Max Records) persegue o cão da família pela casa numa turbulência alucinante. Ele é um miúdo. Pleno de energia, desassossegado e bi-polar. Passa da alegria eufórica ao desgosto lancinante, para esquecer de tudo logo a seguir. Tem ataques de fúria e de absoluta felicidade. Tão depressa está às gargalhadas numa luta de bolas de neve, como a seguir solta lágrimas, porque os meninos mais velhos, amigos da irmã adolescente, lhe destroem o buraco na neve. Um miúdo, enfim. Solitário, como todos os outros da sua idade que vivem num mundo de adultos, onde há o aquecimento global e mães que estão a preparar o jantar, em vez de ir conviver com os filhos para debaixo de um forte improvisado no quarto, com os outros bonecos de peluche. Max quer atenção, irrita-se com a mãe, está descontrolado e parte para este mundo onde os seres são monstruosos e ainda selvagens (leia-se: muito mais interessantes). Aqui, nesta ilha inexistente, os habitantes anseiam por um rei para os (des)governar. Mas também eles terão de aprender a controlar as suas emoções. Estes monstros estão mais preocupados com brincadeiras altamente destrutivas, em pregar partidas, atirar-se uns para cima dos outros, rebolar-se nas descidas, sujar-se na terra. Preocupam-se com paus, e buracos, e bolas de lama. E em construir fortes, onde só pode entrar «as pessoas de que gostam».

Também há mágoas aqui, também se sofre. Sonze povoa esta ilha alternativa de ecos da primeira parte do filme, como réplicas distorcidas de um sonho. Max e os seus monstruosos e fofinhos amigos partem para guerras, dedicam-se a brincadeiras como se elas fossem a coisa mais urgente do mundo, mas no minuto seguinte, já mudaram de jogo e de amigos. Porque são saudavelmente incoerentes e imprevisíveis. Porque podem. Porque são miúdos. Sniffff...

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