quinta-feira, 7 de junho de 2007

A ponte é uma paragem

A Ponte, de Eric Steel

Plufff!!! Um barulho na água. Uma espuma branca no mar. É tudo quanto vale uma vida humana. Uma onomatopeia.


É um cenário tão pacífico como o nome, em caixa alta, do oceano em fundo. O azul da baía de S. Francisco. O branco do sinistro rochedo Alcatraz que de longe nem parece lá muito sinistro. O laranja da icónica Golden Gate Bridge, a ponte laranja e suspensa, obra-prima da engenharia dos anos 30, uma das maravilhas do mundo moderno. E as gaivotas, as focas, as crianças que jogam futebol nas margens, os operários que almoçam, os artistas que pintam a paisagem, os turistas que a fotografam... E as águas, as mesmas de onde uma Kim Novak ensopada, e supostamente possuída pelo espírito de Carlotta Valdez, é resgatada por Scottie Ferguson (James Stewart), um detective obcecado e com medo de alturas, em Vertigo de Hitchcock... Dificilmente conseguimos olhar a ponte daquele ângulo, vista da margem da cidade de S. Francisco, sem nos ecoar por dentro a admirável banda sonora que o fantástico Bernard Herrmann compôs para este filme. Uma música também ela cheia de acordes dissonantes, e de remoinhos e de vertigem. E estamos neste ponto, no início do documentário A Ponte, a primeira longa do produtor americano Eric Steel. Mais uma gaivota, mais um wind-surfista que passa, outra vez a contagiante música de Herrmann a tocar só na nossa cabeça... e eis senão quando... plufff!!! Isso mesmo, uma onomatopeia. Um barulho na água. Uma espuma branca no mar. É tudo quanto vale uma vida humana. Um homem de t-shirt verde a saltar a amurada da ponte. Um suicídio num postal ilustrado. Um pontinho em queda livre. Plufff! Espuma e A Ponte, o titulo do genérico a aparecer justamente onde aquela vida acabou de desaparecer. Assim, sem mais. Plufff. O fim. O princípio.

O documentário parte do poder de atracção irresistível da Golden Bridge. Para os 9 milhões de turistas que a visitam anualmente. E para milhares de pessoas que entraram nela e nunca alcançaram a outra margem. Desde 1937, mais de mil e quinhentas pessoas escolheram este destino trágico: o de usar a ponte como ponto de paragem. Chamam-lhes «jumpers», na gíria profissional dos polícias que fazem rondas aleatórias, no tabuleiro, a tentar interceptar comportamentos suspeito. E lá em baixo, a resgatar os corpos.

Dizem que esta ponte é a mais fotografada do mundo. Dizem que é o local do planeta onde mais suicídios se registam, a uma média de 25 por ano. Dizem que a contagem oficial de casos de suicídios cessou em 1995, para evitar que a mediatização do milésimo suicídio inflacionasse as tentativas. Diz-se que, em memória dos 1200 suicídios, num dia do ano passado os sinos da velha catedral de St. Mary dobraram (por eles e por nós). Diz-se que foi, enfim, quando o documentário estreou que o conselho da ponte aprovou a colocação de barreiras anti-suicídio (à semelhança do que acontece na Torre Eiffel e no nosso viaduto Duarte Pacheco), sempre rejeitadas por razões estéticas e orçamentais. Diz-se muita coisa. Quando, nestes casos do suicídio o importante é não dizer muito.

O efeito bola de neve. Os psiquiatras explicam-no. O suicídio tem um lado de chamada de atenção, de encenação dramática, é o último acto. Punição para o próprio porque está dramaticamente infeliz e tragicamente desesperado. Castigo para os outros que não o conseguiram fazê-lo feliz... E este documentário trá-los para o centro do palco, actores principais do espectáculo, com direito ao nome nos créditos do final do filme... O documentário funciona como um memorial a que não tiveram direito. Mas é que nem tinham de ter. Eles estão no fundo do poço no alto de uma ponte. Não no alto de um pedestal.

E por mais que, através de depoimentos de amigos e familiares das vítimas, o realizador tente densificar e humanizar aqueles que há pouco eram só espuma no mar, fica-nos sempre a sensação de que para ele terá sido demasiado sedutora a ideia de fazer um remake cinematográfico dos espectaculares e terríveis saltos para o vazio, segundos antes da desintegração das torres gémeas. Esses sim, com direito a memorial.

Durante um ano, a equipa de Eric colocou câmaras em pontos estratégicos da ponte. Para conseguir as necessárias autorizações, o realizador ludibriou as autoridades: disse-lhes candidamente que estava a preparar um documentário sobre a beleza paisagística da Golden Bridge e sua entourage natural. Debaixo do manto diáfano da fantasia, a nudez crua da verdade: o objectivo era mesmo captar suicídios, ao vivo e a cores. As deambulações de sonâmbulos pela ponte, as hesitações, o arranque súbito, o salto, o fim onomatopeico lá em baixo. Hora a hora, as cassetes das câmaras eram trocadas. O realizador diz que a intenção era «compreender este ângulo obscuro da mente humana». Diz que os operadores telefonavam à polícia assim que as suas câmaras detectavam um provável suicida. Diz que chegaram a impedir que algumas tentativas se concretizassem. Diz que indicavam à polícia marítima o local exacto onde procurar o corpo... Dizem muitas coisas. Mas o que interessa é o que se vê. E o que se vê é uma espécie de programa da National Geographic sobre a vida selvagem – só que com humanos em vez de animais. Também os cientistas e os intrépidos camera-men se abstêm de intervir, quando o predador se aproxima da indefesa cria de gazela. Não tentam afugentar o leão, nem proteger a presa. Deixam que as leis da selva vigorem por si, nesse laissez faire, laissez passer biológico, para não desequilibrar o ecossistema. Mas até aí, o que vemos é uma montagem. Filtrada pela sensibilidade e bom senso do autor. São suprimidos os primeiros planos, as cenas mais sangrentas, o estrebuchar do animal a ser devorado ainda vivo... Não por uma questão de respeito ao animal devorado. Comer e ser comido faz parte das regras do jogo. Mas por uma questão de pudor.

E a forma despudorada com que Eric Steel abre o seu filme, nesse aproveitamento estilístico da espuma da morte para aí inserir as primeiras palavras do genérico, prenuncia desde logo algumas reservas quanto ao carácter oportunista do projecto. É que nem sempre é fácil traçar o meio da ponte. Nem sempre é fácil separar-lhe as margens. Onde acaba a denúncia e começa a exploração do sofrimento e do desespero de vidas alheias até ao último frame? Este não é um reality show levado até às últimas consequências. Porque as últimas consequências ainda estão para ser inventadas. Apenas se abriu uma brecha no dique do voyeurismo e do sensacionalismo mórbido. Se o dique ceder seguem-se as cenas dos próximos capítulos, uma câmara subaquática, por exemplo, para que o espectador não perca pitada, os desmembramentos do impacto na água, a agonia do afogamento, os últimos estertores da morte. Ou então persegue-se o filão, a seguir aos saltos na ponte de S. Francisco porque não os enforcamentos nas prisões? Ou os suicídios nas linhas de comboio? Ou as convulsões da overdose?

Para denunciar a ausência de barreiras anti-suicídio naquela ponte, Steel não precisava de ter mostrado meia dúzia de quedas. Para falar dessas pessoas enjauladas dentro de si próprias não precisava de as ter exibido ao mundo. Aquelas eram pessoas reais. E aqueles eram os seus últimos momentos. Talvez fosse mais honesto se o realizador se limitasse a colar os saltos letais. Todo o enquadramento e os depoimentos dos familiares soam a grande aparato, a grande empenhamento auto-justificativo. Porque a inaugural intenção, o ponto de partida era mesmo a captação do acto suicidário. Dificilmente esta nódoa se desgrudará do filme. A nódoa do voyeurismo que desperta o que de mais primário e destruidor existe em nós. Um espectáculo de morte utilizando as ferramentas do cinema. Como naqueles filmes série B, em que os transeuntes ávidos de sangue gritam Salta! Salta! Como as tricoteuses da guilhotina francesa, que interrompiam o crochet a cada cabeça decepada. Como nas arenas romanas. Como nos autos de fé. Como nas touradas. E a marca civilizacional é justamente retirar de cena o que não deve estar em cena. O obsceno. Por isso, o documentário foi rejeitado nos festivais de Cannes e Berlim. Talvez por isso, só passados dois anos sobre a sua estreia nos EUA, depois de bem arrefecida a polémica, tenha chegado a Portugal.

Apesar de tudo, A Ponte é um documentário-choque. Como todas as pontes, tem um outro lado, que por momentos faz esquecer o foco de rapina das câmaras ocultas. Eric inspirou-se num artigo do jornalista Tad Friend, no New Yorker. Ali se lia uma passagem de uma carta de despedida: «Vou caminhar até à ponte. Se uma pessoa me sorrir pelo caminho, não salto». Saltou. Um dos wind-surfista do início do documentário, o que sentiu «some stuff falling», conta como acordou naquela manhã a pensar que estava um belo dia para surfar. Enquanto noutro ponto da cidade, alguém acordou a pensar que estava um belo dia para morrer.

Eric conseguiu entrevistar um dos raros sobreviventes a um salto na ponte (sessenta e tal metros a cento e muitos à hora). Mal deu o passo em falso, arrependeu-se, pensou que afinal queria viver, tentou entrar de pés na água, submergiu uma centena de metros, voltou à tona e... respirou. Uma foca (atenção que nas legendas lê-se gaivota), conta, amparou-lhe uma das pernas. Achou que era uma enviada divina. Duas vértebras estilhaçaram-se, entrou em coma, mas sobreviveu. Lembra-se de que, nesse quase fatídico dia, calcorreava a ponte, desesperado, com a cara lavada em lágrimas. Uma turista alemã abeirou-se dele. Passou-lhe uma máquina para as mãos: «Se faz favor, pode tirar-me uma fotografia?».

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