quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Sociedades com classes

DOCLisboa 2008

A VISÃO propõe-lhe um itinerário escolar para se orientar por entre os 175 filmes presentes no DOCLISBOA

É como o trabalho do paleontólogo. Apenas com um osso fossilizado reconstitui o resto do esqueleto. Como da parte desvendar o todo e de um só gene descodificar a sequência de ADN. A escola talvez seja a molécula que mais nos ajuda a compreender o organismo social. E as deformações genéticas de que ele padece. Mostra-nos a escola, dir-te-ei o país que tens. Há quem sustente que o grau de civilização de um país se mede pela forma como ele trata as suas crianças. A escola é um barómetro, uma comunidade em laboratório, um lugar social por onde obrigatoriamente transitamos, um pequeno canto do mundo... Uma das instituições, tal como as prisões e os hospitais, que informam o sistema vital colectivo. Daí que tantos documentaristas se tenham detido nestas sociedades com classes. No ano em que o extraordinário filme de fusão, entre a ficção e o real, A Turma (estreia-se dia 30), de Laurent Cantet, baseado no livro de François Bégaudeau (editado pela Dom Quixote), arrebatou a Palma de Ouro em Cannes, nesta sexta edição do DOCLISBOA (entre 16 e 26 de Outubro) é possível traçar, por entre os 175 filmes em exibição, na Culturgest, no Cinemas Londres e São Jorge, um itinerário escolar. Tanto mais que o convidado de honra deste ano é o americano Frederik Wiseman, uma lenda viva do documentário e da história do cinema, a quem será dedicada uma retrospectiva de 11 títulos. E Wiseman sempre nos deu esta visão panorâmica da América através dos seus bastidores sociais: do exército (Basic Training) à justiça (Juvenile Court); da indústria alimentar (Meat) às prisões psiquiátricas (Titicut Follies); de um centro de segurança social (Welfare) às escolas (High School I e II). Nestes últimos, de forma quase extenuante (também para o próprio espectador), o realizador disseca, passo a passo, centímetro a centímetro o espaço, os discursos, os gestos de duas comunidade escolares: em 1975, num dos maiores liceus da Filadélfia e 25 anos depois, num estabelecimento alternativo de sucesso em Harlem (Nova Iorque), onde 90% dos alunos consegue ingressar na faculdade. Em ambos, Wiseman e a sua câmara paciente, discreta e atenta, quase intuitiva, cria um espaço fílmico. E capta com uma aridez narrativa e minuciosa, os poderes institucionais que ora moldam ora formam ora vergam...

Não admira que tantos realizadores célebres tenham este fascínio pela escola enquanto palco narrativo. Ela contém todos os ingredientes cinematográficos: há conflito garantido, tensão, hierarquias, autoridade, submissão, subversão e mecanismos de controle social. Há um espaço físico localizado, um campo de batalha (a sala de aula), protagonistas (o professor e alguns alunos), personagens-tipo, personagens colectivas (a turma), personagens secundárias, figurantes, leis e códigos de conduta próprios, representações sociais, e um processo de transformação em curso... Como se fosse uma sociedade em ponto pequeno, com sistema legislativo (as normas da escola), judicial (as punições), e político (nas escolas democráticas, o poder encontra-se concentrado na classe dos professor, os alunos fazem parte de uma oposição que nunca – espera-se? – chegará ao poder; nas escolas ditatoriais a existência de oposição não é sequer admitida).

Na verdade, pode-se falar nos filmes de violência escolar como um sub-género cinematográfico, desde o clássico Zero em Comportamento (1933), de Jean Vigo, o filme que inspirou os realizadores fulcrais da Nouvelle Vague e que foi banido durante 12 anos por celebrar a rebelião juvenil. Em 1955, Sementes de Violência (com o mais sugestivo título na versão original, Blackboard Jungle), de Richard Brooks, semeou mesmo a insurreição, ao som de Rock Around the Clock. Richard Dadier (Glenn Ford) era um professor idealista que achava que podia mudar aquele pedaço de mundo, numa escola problemática, em Nova Iorque, infernizada por gangs, conflitos resolvidos à navalhada e tensões raciais. Nesse filme há um outro professor que diz: «A escola é uma grande lata de lixo da sociedade e a nossa função é sentarmo-nos sobre a tampa para que o lixo não transborde». Em 1989, um outro professor, John Keating (Robin Williams), em Clube dos Poetas Mortos (de Peter Weir), tenta abalar os pilares que sustentam uma escola tradicionalista. A academia impõe «tradição, honra, disciplina e excelência» e o professor mostra aos alunos outra cartilha, que fala de poesia, de insubmissão, de Whitman e Byron, de uma máxima latina: «Carpem Die».

Elefante (2004), de Gus Van Saint, – o último «filme escolar», antes de A Turma, a ser premiado com a Palma de Ouro em Cannes – baseia-se no massacre a tiro no liceu de Columbine, ocorrido no ano anterior. O título, aparentemente, não tem nada a ver com esta violência escolar extrema. Refere-se à parábola budista segundo a qual vários cegos palpam as diferentes partes de um elefante. Cada qual consegue descrever a tromba, as patas, as orelhas, mas nenhum tem a noção do animal no seu todo. É esta visão fragmentada que Gus Van Saint propõe. Várias perspectivas desconexadas da escola e da adolescência, vários os sentimentos que a instituição provoca. O estímulo, a humilhação, o trauma, a solidão, a revolta. Parcelas desencontradas num filme atmosférico, sem tese, que levam a que um adolescente que passou o dia a tocar sonatas de Beethoven vá massacrar, de seguida, os colegas de liceu. Todo o ambiente, os espaços, os corredores, a noção de tempo é inspirado no High School de Weisman. E lá voltamos à nudez forte da verdade e aos documentário do DOC. A ver se captamos parte desse grande elefante que é a escola e alguns dos ventos do ciclone emocional que varre a cabeça dos adolescentes.
High School I e II, de Frederick Wiseman (EUA)
20 de Out na Culturgest (16:30) e 26 de Out, no Londres (14:00); 21 de Out na Culturgest (11:00) e 26 de Out, no Londres (16:15)
De um liceu americano, nos anos 60, em que uma aluna é repreendida por trazer saia demasiado mini (acima do joelho), e um professor associa a maturidade à sujeição, dizendo «nós estamos aqui para garantir que te tornas um homem e que sabes obedecer», para uma escola modelo no Harlen Nova-iorquino, em que educar é debater. Tudo isto enquadrado pela contenção, a crueza e uma noção de tempo muito wisemaniana.

A Turma, de Laurent Cantet (França)


22 de Out, na Culturgest (21:00)
Este surpreendente e imperdível filme (Palma de Ouro em Cannes) encontra-se na zona sombra de confluência entre o documentário e a ficção. Uma turma real parisiense, multiétnica e insubmissa e um espantoso professor (o próprio Bégaudeau que escreveu o livro A Turma), que enfrenta o desinteresse, as interpelações e as provocações dos alunos como uma notável estratégia argumentativa e desconstrutiva. Curiosamente, também foi de França que nos chegou às salas (coisa rara) um outro documentário passado entre os muros de uma escola primária da província: Être et Avoir (2002), de Nicolas Philibert.

After School, de António Campos (EUA)
20 de Out, no Londres (20:30)
Um estranho objecto cinematográfico da secção Riscos e Ensaios, comissariada por Augusto M. Seabra, que já classificou esta programação do DOC, como avassaladora: «O ano de todas as ousadias». Este documentário, que contém sexo adolescente, mentiras e vídeo, tem o efeito matrioska de um filme dentro de um filme, a partir de uma homenagem-vídeo feita por um aluno, aquando da morte de duas colegas gémeas, num liceu de elite, na costa leste dos EUA.

Alone in Four Walls, de Alexandra Westmeier (Alemanha)
17 de Out, na Culturgest (20:45); 23 de Out, no Londres (17:45)
Uma perturbadora viagem ao interior de um internato russo, para onde são levados os miúdos (até aos 15 anos) com um historial de crime. A cabeça dos alunos é rapada, são sujeitos a um regime militarista e colectivista. Na sala de aula, um deles diz que a cor preferida é o preto. «Porque o escuro é preto e no escuro podemo-nos esconder».
Hold Me Tight, Let Me Go, de Kim Longinotto (Reino Unido)


22 de Out, na Culturgest (22:00) e 16 de Out, no Londres (18:00)
Talvez o mais tocante de todos estes documentários sobre o meio escolar. Sobretudo pelo contraste com o anterior, Alone in Four Walls. Nesta escola especial, em Oxfordshire, os miúdos problemáticos não são deixados sozinhos. Aliás, há 108 adultos para apenas 40 crianças. Traumatizados por várias disfunções familiares, estes miúdos foram expulsos do sistema regular, mas o país não desistiu deles. Eles saltam por cima das mesas, dão pontapés aos professores, cospem-lhes, insultam-nos mas estes permanecem firmes, com uma paciência de Ghandi imobilizam-nos com um abraço e ensinam-lhes o afecto. Mais tarde ou mais cedo ele acaba por chegar.

Queria Ser, de Sílvia Firmino (Portugal)
23 de Out, Culturgest (23:00); 21 Out, Londres (18:00)
Apenas dez alunos numa escola em vias de encerrar, no interior do país. A câmara da autora acompanha as rotinas de aprendizagem destes alunos, do primeiro ao quarto ano, as suas reacções e apreensões, dentro e fora da sala de aula. Vale pela sequência em que um miúdo encontra uma outra e um pouco auto-mutiladora utilidade, além da escrita, para um lápis afiado.

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