quinta-feira, 21 de junho de 2007

A dama e o vagabundo

Lady Chatterley, de Pascale Ferran

Lady Chatterley é a história da descida do castelo à cabana. Entre o grito e o sussurro, entre o lírico e o carnal, sem nunca resvalar para o ridículo. Um equilíbrio raro


Como é que um elefante atravessa uma loja de porcelanas sem se ouvir um escaqueirar de louça, um estilhaçar de copos, um bater de pratos? A imagem está mais do que gasta mas aplica-se – à falta de melhor... É que fazer outra adaptação ao cinema de Lady Chatterley, o romance de D.H. Lawrence que escandalizou a Inglaterra de 1928, ainda cheia de sobrevivências vitorianas, faz sempre soar todos os alarmes. Os alarmes do enorme cliché que se gerou em torno do livro (muito mais famoso do que lido). Os alarmes da redundância erótica. Os alarmes do ridículo. E a verdade é que mesmo a rondar as zonas de alto risco, o filme da realizadora francesa Pascale Ferran consegue não fazer accionar o mais melindroso sismógrafo. E isso é raro e muito, muito difícil.

Desde o início o filme consegue manter o mesmo andamento. Um andamento quase fluvial. Vai correndo por ali, sem pressas, sem sobressaltos, sem alterações de ritmo, mas nós sabemos muito bem onde vai desaguar. A partir do momento em que Constance vai para a floresta à procura de junquilhos, e abre a cancela do jardim que dá para a floresta. Está aberta a comporta. É só deixá-la correr, ela seguirá o seu caminho, que é o mesmo de todos os tempos, de todos os lugares – o que não tem sentido nem nunca terá...

E Constance (Marina Hands) é uma aristocrata «de doçura tranquila que dissimula a inteligência». E que vai vivendo (seria melhor dizer morrendo) o tédio da sua existência. E escoando o seus dias na monotonia do seu casamento com Chatterley, um homem deixado tetraplégico e impotente pela Primeira Grande Guerra. Um dia, entre a folhagem da floresta (e são muito bem conseguidos estes planos subjectivos), descobre Parkin, guarda-caça, empregado do marido. Descobre o corpo dele, na verdade. E esta é a história deste encontro improvável, mas progressivo e gradual, entre uma aristocrata e um plebeu. Desta descida do castelo à cabana. Que, no fundo, é a descida ao mais primordial, inato e espontâneo desta condição que não deixa de ser humana por causa disso. Porque este começa por ser um amor sem sentimentos – nem de paixão, nem de culpa, nem de nada. É um amor físico – se é que isso existe? Ou, reformulando pergunta, se é que o contrário existe? «Eu sabia que mais cedo ou mais tarde isto ia acabar por acontecer», diz esta espécie de caseiro à patroa que se tornou amante. Pois sabia, nós também. Mas não temos que saber explicar porquê. «São daquelas coisas que acontecem», diz o caseiro. Só isso...

Claro que este «só isso» é tanto... Sobretudo se não foi acompanhado pela culpa, pelo remorso, pelo castigo do amor adúltero. Sobretudo na época escandalizada em que foi lançado. Em torno do último livro de D. H. Lawrende gerou-se um daqueles fenómenos atmosféricos designados por tempestades de verão. O sol esconde-se, o céu enegrece como chumbo, trovoa imenso, tanto barulho e aparato não para um copo de água, enfim, mas para uma chuvinha de nada, rapidamente debelada pelo calor, outra vez. Consideraram-no um romance abominável, depravado, obsceno, impróprio para senhoras. Foi livro queimado aí nas fogueiras das inquisições moralistas, proscrito até à década de 60. Desde essa data, passou a livro quase panfletário: aquele que iluminava as zonas sombra da alma feminina – o que também soa a tempestade de Verão...

E afinal, a história tem muito mais de candura do que de perversão. O que o livro e o filme conseguiram foi associar conceitos a que nos habituámos a ver nos dicionários de antónimos (existem?). Por isso, se o livro desafiou as convenções morais, o filme de Pascale Ferran também fez o mesmo às convenções cinematográficas do século XXI. Consegue caminhar nessa fina barreira do bom gosto, entre o grito e o sussurro, sem nunca dar um passo em falso. Consegue ser pudico nas seis sequências (às vezes longas) de amor físico. Consegue ser delicado na rudeza, purificador no carnal. E lírico sem ser sentimental, ou ternurento sem ser piegas, ou sensível sem resvalar para o ridículo. Até nas cenas mais «impossíveis», como aquela em que Parkin decora o corpo da amante com flores. Ou aquela em que os dois, nus, correm debaixo de uma torrencial e quase virginal chuvada.

Pascale Ferran, que com o filme ganhou 5 Césares e uma torrente de espectadores nas salas, escolheu para o papel do caçador um actor desconhecido. Queria que o espectador o descobrisse ao mesmo tempo que Constance. E escolheu também a segunda versão da obra. Aquela em que o empregado é um homem ainda mais rústico, mais nodoso e opaco. Queria que a relação entre eles fosse ainda menos cerebral, ainda menos verbal.

E no início nunca foi o verbo. É a calma. Mas uma calma anunciadora da tempestade. A rotina meticulosa da casa, o esfregar das pratas, o branco dos lençóis estendidos, os silêncios, a limpeza do marfim do piano, nota a nota. Só que a natureza está por todo lado (e difícil deve ser filmar os passarinhos, os esquilos, os regatos e as flores sem cair no registo do postal ilustrado) – e algo está definitivamente para acontecer. Ou como dirá o caseiro: «tinha de acontecer». O homem é-nos apresentado subtilmente, pelo olhar fragmentado de Constance, o torso, a zona entre o pescoço e a orelha, as mãos grossas que martelam... A passagem do tempo é, em tudo, quase orgânica. Da contenção do Outono, até à explosão da primavera e a redenção do Verão. Constance vai-se libertando de chapéus, de casacos, de penteados retidos. Vai–se despojando de roupa e de artificialismos, à medida que se embrenha no coração da natureza e daquele homem.

Outro elemento interessante no filme é a forma como Pascale convoca narrativamente o próprio livro para dentro do filme. Através das legendas intercalares, como numa fita muda. Através dos assumidos fade out, que sugerem a passagem dos capítulos. Ou mesmo através do filme caseiro que, dentro do filme, enxerta os tempos em que Constance se ausenta, numas férias pela Europa.
Também o que começa quase como um ritual de iniciação vai evoluindo – de forma meticulosamente ténue, sem saltar nenhuma etapa: a precipitação inicial, o pós-embaraço do homem, o seu mal estar quando ela lhe agradece, a dúvida: «Estás arrependida?» «De todo». O lento despertar, a domesticação, o amor? «Tu és como uma casa». Aqui o sismógrafo acusa alguma coisa: é um tremor de coração.

1 comentário:

Teresa Rita disse...

Parabéns Ana, brilhante comentário a um filme que ainda não vi (gostei imenso do trailer). Comentário esse que me aguçou a curiosidade para o ver. O livro já o li e gostei imenso.