quinta-feira, 18 de outubro de 2007

Tão concreta e definida

Eles, de David Moreau e Xavier Palud




Eles, de David Moreau e Xavier Palud, arranca bem e remata mal, como se o espectador encomendasse arroz de marisco e lhe trouxessem aquelas tirinhas prensadas de delícias do mar


Conta-se que um dia um ladrão puxou a carteira por trás a Sophia de Mello Bryener. Ela disse: «Que susto! Pensei que fosse um fantasma». Sophia temia mais as aparições do espírito do que as da terra, talvez porque ela própria fosse menos deste mundo que de (um) outro. A dupla de realizadores franceses, David Moreau e Xavier Palud, fez uma espécie de réperage pelos lugares do susto. Concluíram que aquilo que as pessoas consideram de mais aterrador é a ideia de um intruso dentro da própria casa. E é desta premissa que parte a sua primeira longa-metragem, Eles.


Quais monstros com tentáculos e dupla mandíbula trituradora? Do que as pessoas têm mais medo é dos seres com dois braços, duas pernas e cinco dedos em cada membro (com polegar oponível). Eles andam aí, lá fora. E o pior de tudo é quando Eles andam cá dentro. O filme começa num tom muito slasher dos anos 80, numa cena de beira de estrada e uma miúda apavorada dentro de um carro. Estamos na Roménia, o que só por si traz a sua dose de susto – embora a Transilvânia do Drácula seja muito mais encantadora do que a Bucareste de Ceausescu. Daí passamos para uma professora de francês que vive com o marido escritor numa mansão decrépita e isolada no meio da floresta. Tudo muito tranquilo entre o casal, e os realizadores prolongam esta acalmia que, nos filmes de terror, costuma anteceder a tempestade. Calma aparente – e o espectador a perceber que não tarda nada aquele décor será tão sossegado como a zona mosh de um concerto.


A casa tem, de facto, alta cotação na bolsa de valores do susto. Uma casa velha, bege, labiríntica, cheia de sombras e refúgios, a precisar de obras, com paredes encardidas. Tudo por ali range e empena, como móveis de madeira húmida. E há um cão que ladra – há sempre um cão que ladra. Neste filme de baixo orçamento, sem grandes efeitos que não sejam os puramente cinematográficos e sonoplásticos, os realizadores dominam todos os códigos, cumprem as regras do terror, todos os pactos previstos, todos os clichés do género – e um cliché bem empregue é como as boas imitações: muito mais difíceis de conseguir do que uma má originalidade. Eles sabem como gerir a atenção e a tensão dos espectadores. Os enquadramentos são opressivos, o suspense bem afinado. O ritmo está certo – alternando-se os momentos inócuos, com os momentos aterrorizadores. A dose de sugestão é a correcta – não se mostrando mais do que aquilo que se oculta. E muito mais medo provoca o que não se vê mas apenas se pressente. Barulhos, gemidos, um telefone que toca, a luz que se apaga, passos, há alguém dentro de casa a meio da noite. Nada de mais aterrador. Eles andam aqui.


E até mais ou menos a meio, o filme resulta. Há maçanetas que rodam, perseguições e fugas. Acompanhadas daquela sensação equívoca de que pode não ser nada, a não ser o sono da razão a gerar os monstros do costume. Até aqui tudo bem (ou tudo mal para os protagonistas). O pior é quando se começa a levantar o véu. Porque nada se cria, tudo se vende e trafica. Quem vê, paga com o susto mas aguarda o troco pelo esforço e dispêndio de adrenalina. Se o desenlace não convence, o espectador sente-se defraudado, como o freguês que compra um arroz de mariscos e sai-lhe aquelas tirinhas prensadas de delícias do mar.


Os realizadores esforçam-se, prolongam o pouco elástico argumento. Num só filme temos os quatro exercícios de terror: primeiro terror dentro de um carro; em seguida exploram-se todas as potencialidades de terror caseiro, dentro daquela mansão; depois temos o terror florestal nocturno; e, como se não bastasse, o filme encerra com o terror subterrâneo, numas catacumbas, cheias de túneis e galerias que havia ali no meio da floresta, mesmo a calhar. É que enquanto não se revela a origem do medo – toda a gente preenche essa lacuna com os seus piores pesadelos. E isso pode ser mesmo aterrorizador. Quando tudo se torna tão concreto e definido como outra coisa qualquer... Quando a montanha pare um ratinho que só mete medo às senhoras histéricas de antigamente, o filme corre o risco de ser lembrado com um indiferente encolher de ombros... E de pouco serve a advertência de que o facto foi baseado em factos reais – dizem os realizadores que um taxista checo (os taxistas são sempre as mais fidedignas e informadas fontes, com seus repuxos e cataratas), lhes contou uma vez o caso. Desde o Projecto Blair Witch já ninguém acredita.


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