quinta-feira, 15 de março de 2007

Il crocodilo come fa?

O Caimão, de Nanni Moretti


Como é que numa fase já adulta da democracia, os cidadãos ainda se deixam enrolar? O assunto é sério, demasiado sério. Talvez por isto, Moretti nunca põe os espectadores a rir de Berlusconi. E chama-lhe Caimão


O Caimão, de Nanni Moretti, é um filme com várias operações de resgate em curso. Tenta resgatar-se uma peça de LEGO perdida – há sempre uma que falta. Tenta resgatar-se os últimos pedaços de um casamento estilhaçado – mas os remendos já não encontram alicerces seguros. Tenta resgatar-se o tempo perdido para se estar com as crianças – mas elas acabarão por crescer. Tenta resgatar-se os poucos créditos que restam para se fazer um filme – mas os descréditos acumulam-se. Tenta resgatar-se o derradeiro fôlego de esperança de um enfermo – que ainda nem deu conta de que está doente. Terminalmente doente? Quase.

Até dá vontade de parafrasear a curta de animação da muito premiada Regina Pessoa, que acompanhará o filme de Moretti nas salas portuguesas, e dizer que esta é uma história trágica com final em aberto. O paciente saiu dos cuidados intensivos, está em convalescença, é verdade, mas não completamente fora de perigo. Anda combalido, meio aturdido, ainda não consegue explicar bem o que lhe aconteceu. Podem ter ficado lesões, metástases. Pode haver recaídas. Graves. Irreversíveis, pois. Nanni Morreti não é um optimista. É um tipo de esquerda, em eterna crise de identidade. Desencantado – à falta de melhor, esta é uma palavra boa.

E com isto já lá vão 1315 caracteres (com espaços) e ainda nem dissemos que o paciente de que fala o filme é a Itália, depois de anos a fio de intensa, virulenta e algo delirante berslusconização. Berlusconi foi o agente patogénico, se aceitarmos esta fórmula um bocado simplista, que deixou a Itália de cama, mas não imunizada. Portanto, nem se pode ver este filme com o alívio retrospectivo de uma epidemia debelada. Há focos infecciosos por todo o lado.
Seja como for, o risco de contágio não está tão aceso, como exactamente há um ano, quando o filme estreou em plena campanha eleitoral, que iria derrotar Bersluconi, e vitoriar Prodi (por pouco). O filme chega-nos com um ano de imperdoável atraso, quando a Itália já se encontra em fase de rescaldo, de stress pós-traumático, a tentar resgatar (lá está...) os pedaços da sua auto-estima, feita em ruínas por uma personagem a quem Moretti, inspirado na expressão de um comentador político, resolveu dar nome de réptil. Não que a figura de Berlusconi não se prestasse a outras metáforas animalizáveis, um outro bicho, de sangue quente, com penugens exuberantes. Mas Moretti escolheu este crocodilo de menores dimensões, que volta e meia (isto faz parte de todas as mitologias urbanas) se infiltra nos esgotos sul-americanos. Terá muito menos potencialidades cómicas do que um mamífero... Mas esta já faz parte da inteligentíssima opção cinematográfica de Moretti. Fazer de Berlusconi um caimão. Rastejante, e insinuante, e anfíbio, e voraz. E até sinistro – se não fosse esta a palavra que no género feminino e em italiano menos se adequa ao ex-primeiro ministro italiano.

É que este é um filme sobre o Berlusconi, mas não é um documentário à Michael Moore. O confronto Moretti-Berlusconi faz-se num plano menos óbvio. Aliás, o Cavaleiro, como lhe chamam em Itália, nem é personagem una e principal da história. Tudo roda em torno de um produtor (Sílvio Orlando) de filmes série Z, em adiantado estado de falência no trabalho e no casamento. É uma espécie de Ed Wood à italiana dos tempos modernos, quer rodar um filme sobre Cristóvão Colombo (que praga quatrocentista será esta que toma de assalto escritores e realizadores?), usando uma caravela de brinquedo numa piscina. Mas depois tudo falha. O filme afunda-se, o casamento submerge, o produtor começa a perder o pé. E um guião entregue por uma jovem e inexperiente cineasta (Jasmine Trinca) é a única tábua de salvação que tem por perto. Lê-o na diagonal e tenta convencer a RAI a patrociná-lo. E, se virmos bem, com argumentos não muito diferentes dos que Berlusconi usou para convencer eleitores – ou será melhor dizer, telespectadores: «Muita acção, multidões, um helicóptero...». Só depois se apercebe de que não está a produzir um thriller inócuo mas um filme sobre Berlusconi, ele que nem é um homem de esquerda, que tem preconceitos sexuais, que sempre se bateu contra o cinema de autor e até votou nele...

E nesta fase, já nos encontramos num filme dentro do filme. Entre as ruínas de um decrépito estúdio para western spaghetti e uma piscina desactivada. Entre várias impossibilidades. A de reatar um casamento; a de normalizar as relações com os filhos («Até que idade se podem fazer coceguinhas?» «Até aos dez».); a de construir uma nave espacial sem a tal peça de LEGO, amarela e achatada; a de fazer um filme incómodo que ninguém quer protagonizar, que ninguém quer patrocinar, em que ninguém acredita. Excepto uma realizadora novata e um produtor desesperado.

No meio de tudo isto, aparece Berlusconi, mas de forma indirecta, quase enviesada, e no entanto, sempre tão omnipresente, num registo que vai do sombrio Darth Vader ao mais apatetado apresentador de programa de televendas.

O Berlusconi de O Caimão desfila no ecrã com quatro faces. Uma delas é a do próprio, in person: a actuar no seu one man show, em imagens reais, enquanto se tentava esquivar aos inúmeros processos judiciais que protagonizou, por fraudes e corrupções várias, ou enquanto embaraçava a Itália ao insultar um deputado alemão, em 2003, durante a presidência italiana da União Europeia. Noutras vezes aparece por interposto actor – até é interpretado por Michele Plácido (o célebre inspector Cattani da série O Polvo). Por último, é Nanni Moretti que faz um Berlusconi de barbas. Achou que assim curto-circuitava o espectador: «O facto é que nos habituámos às declarações de Berlusconi, essas declarações já não nos impressionam, não nos apercebemos do seu real peso. Pronunciar essas palavras de Berlusconi sem o imitar ou parodiar permitem-nos restituir esse sentimento de ameaça que está no coração da política italiana», disse Moretti.

A habituação pode ser maldição. Durante mais de trinta anos, os italianos habituaram-se às argoladas deste magnata da comunicação social (tem três canais em seis de sinal aberto e quatro dezenas de revistas, além de empresas várias de marketing, publicidade e cinema), e que chegou à política para se proteger da lei – a si próprio e à sua fortuna. O parlamento atarefou-se a aprovar medidas ad personam, para resolver os seus problemas judiciais e financeiros. Carnavalesco, desbocado, pouco credível, este self made man fez pairar o fantasma dos comunistas devoradores de criancinhas, alimentou o culto da personalidade, estagnou a economia, cometeu gaffes internacionais, vociferou contra o aborto, os gays, as uniões de facto, os imigrantes, aqueles que proíbem crucifixos nas escolas, acumulou batotas, demagogias, escândalos, liftings e arrufos conjugais, manifestou o mais profundo desprezo pelas leis, pelos juízes – dizia que se tinha sido eleito pelo povo, não queria ser julgado por alguém que chegara àquela posição por concurso!!! –, pelos impostos, pelos políticos, pelos Estado (sem que os eleitores se apercebessem do paradoxo). Nos comícios, as pessoas aclamavam-no, «Duce!, Duce!», como as gerações anteriores fizeram a Mussolini. E, no entanto, num país de grande dispersão partidária e de acentuada rotatividade – chamemos-lhe assim – governamental, foi o primeiro-ministro italiano do último meio século que mais tempo se aguentou no cargo. Entusiasticamente apreciado por muitos, nestes tempos de políticos cinzentões e de discursos moderados.

No seu último livro, A Passo de Caranguejo, Umberto Eco fala de «involução da História», de «os passos de caranguejo em que tem sido pródigo o terceiro milénio». E discorre sobre as várias armas deste populismo mediático (berlusconiano e não só): lançar provocações em linha de série, desmenti-las no dia seguinte, assegurando parangonas em permanência; a vitimização; a técnica de fazer promessas contraditórias, que se anulam a si próprias, mas que vão de encontro aos desejo das pessoas, como os vendedores de automóveis e de consensos... «O populista identifica os seus próprios projectos com a vontade do povo e depois, se conseguir (e muitas vezes consegue), transforma uma boa parte dos cidadãos naquele povo que inventou, cidadãos fascinados por uma imagem virtual com a qual acabam por se identificar».

O populismo surgirá sempre seguido das mesmas interrogações: Como é que a demagogia tão primária ainda funciona? Como é que cidadãos esclarecidos, com acesso à informação diversificada e com uma democracia longa e enraizada ainda se deixam enrolar? O assunto é sério, demasiado sério. Tão sério que Nanni Moretti nunca deixa o espectador a rir de Berlusconi. E chama-lhe caimão.

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