quarta-feira, 1 de outubro de 2008

O lado lunar

Yella, de Christian Petzold








Penso que era Borges que dizia que a melhor palavra para definir lua era... lua. Por mais que se esforçasse nunca lhe foi possível encontrar uma metáfora melhor para lua do que lua. Lua, palavra sem sinónimos, nem comparações à altura, talvez por ter já de si qualquer coisa de superlativamente poético. Quando, muito anos depois da morte de Beethoven, um crítico chamou Moonlight Sonata à obra que o compositor deixou apenas numerada, o nome pegou. Não haveria designação que tão bem combinasse com a composição mais melancolicamente lunar do mundo. Ficou para sempre Sonata ao Luar, a música que faz as pedras da calçada verterem lágrimas, que induz pavlovianamente a tristeza logo às primeiras três notas. Por isso foi tão usada no cinema. O efeito é tão garantido que se torna, na verdade, fácil demais. E esta questão levanta-se. A de saber porque usou o alemão Christian Petzold esta música como pano de fundo sonoro do seu multi-premiado filme Yella. Sobretudo, quando estamos perante um filme germanicamente controlado, frio e até esquemático. Não nos convence o argumento de redundância facilitista ou de eficiente condicionamento das emoções. É que se entrarmos na lógica puramente cerebral que o filme parece ter, esta é a música que melhor combina com o tom lunar de todo o seu ambiente. A fotografia do filme é toda ela glacial. Tons sombrios, aquáticos, azuis chumbo, azuis cinza, quase feéricos, uma luz fria e afiada... Yella é uma filme lunar.

Debaixo da aparência de um thriller correcto, Petzold vai introduzindo elementos dissonantes que causam o arrepio do guincho que o giz provocava nos quadros negros de antigamente. Vemos uma mulher (a fantástica actriz Nina Hoss), que é uma executiva contabilista (não há muitos filmes em que as protagonistas sejam contabilistas...), muito diligente, que sai da sua pequena terra para ir procurar emprego em Hanover. Deixa para trás o pai e um ex-marido psicótico. Parece que nada a pode deter. Nem sequer um aparatoso acidente de carro, que cai de uma ponte para as gélidas águas de um rio. E aqui Petzold faz uma citação para o filme de terror Carnival of Souls. Yella nas lamacentas margens do rio. Depois do primeiro sobressalto na verosimilhança, o filme segue o seu curso através dos meandros da contabilidade e alta finança, por entre intermináveis reuniões de negócios, entre discussões sobre balancetes e taxas de juros (juro!). Uma realização clínica. Um desempenho hiper-controlado de Nina Hoss. Mas quase a interromper o curso fluvial da Sonata ao Luar, surgem notas estranhas, sobressaltos derivativos, desafinações... E vai-se ganhando progressivamente a sensação de mau presságio, de que algo está para a acontecer, de que algo já está a acontecer...

Porque é que Yella traz sempre a mesma blusa vermelha berrante, que contraste brutalmente com o tom sombrio do filme? Porque é que nunca muda de roupa ao longo de todo o filme? Porque é que ela de vez em quando tem transes, deixa de ouvir as pessoas, e escuta o mesmo restolhar do arvoredo e uns corvos a grasnar? De onde vem o som insistente da água? Porque é que as personagens entram no quarto de hotel uns dos outros como se não houvessem portas fechadas? Porque se detém a câmara por duas vezes numa laranja plena de cor, a ser esquartejada?

Parecia que estávamos no domínio dos números, das finanças e das contas, mas afinal já nada parece tão corpóreo, nem tão físico como a matemática. As contas insistem em não bater certo. O filme abstractiza-se... Quase sem se dar conta transita-se para o plano do metafísico. Como num delírio post mortem, quando a alma se solta e prossegue sozinha, sem o invólucro. Os alemães viram no filme uma metáfora do capitalismo ocidental, face ao cada vez mais desalmado e fantasmagórico leste. Muitos não farão esta leitura. Basta captar o lado lunar.

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