sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

Reviver o passado em Beirute

Valsa Com Bashir, de Ari Folman



Uma (des)animação alucinante sobre as guerras de todos os tempos e lugares





Mais uma prova material da vaga de hiper-realismo que marcou esta edição de Cannes. Os filmes vencedores, A Turma e Gomorra, atravessavam essa barreira invisível «malickiana» entre o documentário e a ficção. Valsa Com Bashir (que fez parte da selecção oficial da competição) também. Por mais paradoxal que possa parecer este improvável encontro da animação com o realismo e o documentário. Está aí o encanto deste filme. Mas não só. Valsa Com Bashir é uma animação cheia de cinema lá dentro: tem momentos cinematográficos inesquecíveis. Também nos planos, nos enquadramentos, na poesia dos supostos movimentos de câmara, na fantástica ligação das imagens com a música - uma mistura entre as Variações Golberg de Bach, com composições inéditas de Max Richter, com Enola Gay, hit dos anos 80, de uma banda chamada Orchestral Manoeuvres in The Dark (lembram-se?) e com alguns temas de punk rock do médio oriente, como um que dizia «I bombed Beirut».

Tal como Persepolis, a animação da franco-iraniana Marjane Satrapi que chegou aos óscares, também esta Valsa é uma peregrinação pessoal às memórias do realizador. E que penetra bem fundo, até aos recantos obscuros mais secretos, onde permanece barricado aquilo que não se quer recordar. Podemos cortar com o passado, o passado é que não corta connosco. Ari Folman tinha 19 anos quando foi enviado nessa missão de invasão do Sul do Líbano, para que Ariel Sharon cumprisse o seu plano dois-em-um: neutralizar potenciais ofensivas palestinianas e colocar como presidente o seu aliado cristão, Bashir Gemayel. Depois dos tenebrosos massacres de Sabra e Chatila, Ari perdeu a memória. Esqueceu o que afinal não se consegue esquecer. No filme, o seu duplo animado faz o seu próprio percurso interno. Os acontecimentos e as personagens são baseadas em depoimentos recolhidos entre os seus camaradas de armas. E depressa se compreende porque escolheu o suporte de animação. Só este lhe permite um inteira liberdade e isenção de restrições orçamentais. Só assim lhe foi possível a incrível cena em que um tanque israelita passa pelas ruas, limando os cantos das casas, cilindrando os carros estacionados... Mas também só a animação lhe permitiria a transição tão perfeita entre a crueza da guerra e o onirísmo das reminiscências, como aquelas em que uns homens a boiar na água, emergem nus, debaixo de um sol nascente. Ou uma outra em que os cavalos do hipódromo de Beirute, agonizam... Mais do que um filme político, ou denúncia, ou expiatório (as culpas de Sharon nos massacres não são salientadas por aí além), este é um filme sobre a guerra. Mas a guerra sem misticismos, nem glórias, nem heroísmos, nem americanismos. É uma guerra à Apocalipse Now. Aliás, também aqui há música, droga, cenas de surf numa praia. Para Coppola como para Ari, guerra é caos, é absurdo, é tédio, é alucinação. Rapazes imberbes morrem, outros ficam traumatizados, e inocentes são dizimados aos milhares. E para que não restem dúvidas do horror, são reais as derradeiras imagens do rescaldo dos três dias de massacre.

1 comentário:

newsweakporto disse...

Gostava só de corrigir a review publicada esta semana (ou na anterior, a memória atraiçoa-me): o exército israelita não foi responsável pela morte de 3 mil palestinianos nos campos de refugiados. O que não invalida o sentimento de culpa de Ari Folman, mas é uma imprecisão. Seria de esperar que fosse fácil a confirmação desse tipo de dados, sobretudo num tempo sensível à questão israelo-árabe como o que vivemos.

Vou acreditar que foi um lapso inocente do jornalista.