quinta-feira, 19 de junho de 2008

O Vermelho e o Negro

O Meu Irmão É filho Único, de Daniele Luchetti

Dois irmãos: um comunista e carismático, o outro fascista e desordeiro. O filme não toma partido, nós sim



«Agora sim, damos a volta a isto!/ Agora sim, há pernas para andar!/Agora sim, eu sinto o optimismo!/ Vamos em frente, ninguém nos vai parar!» A quadra é de uma das mais prometedoras bandas do momento, os Deolinda, a voz de Ana Bacalhau, e as fantásticas letras, carregadas de ironia e exultação, de Pedro da Silva Martins. Na quadra seguinte deste tema chamado Movimento Perpétuo Associativo, Ana afrouxa a voz: «Agora não, que é hora do almoço.../ Agora não, que é hora do jantar.../ Agora não, que eu acho que não posso.../ Amanhã vou trabalhar». Não tem nada a ver esta portuguesa canção com o filme italiano, que aliás traz para o cinema um dos mais conseguidos títulos, O Meu Irmão É filho Único (estreia-se hoje, quinta, dia 20, depois de ter sido apresentado no Oito ½, a Festa do Cinema Italiano, em Lisboa). Acontece que também aqui se fala de perpétuos movimentos, históricos estes, como as marés, cheias e vazas, a transbordar de entusiasmo e de mobilização, ou a esvaziar-se de comodismo e resignação. O filme de Daniele Luchetti passa-se nos tempos de «Agora sim!», nos conturbados anos 60 e 70 italianos, mas é para ser visto agora, nestes demissionários anos do «Agora não...».
Esta é a história de um duplo triângulo, um amoroso e outro político, o que perfaz uma figura geométrica complicada. Dois irmãos apaixonados pela mesma mulher. Duas facções, o comunismo e o fascismo, a habitarem o mesmo homem. Mas esta não é a história do irmão brilhante, comunista, carismático e bonito, amado por todas as mulheres – e por uma em especial: a mãe. Esta é a história do irmão mais novo, o afascistado filho, desordeiro, impulsivo e problemático: Accio (notável e dupla interpretação, primeiro por Vittorio Emanuele Propizio, depois por Elio Germano). O filme apanha-o em adolescente, numa espécie de preâmbulo, a debater-se com os seus primeiros «ismos», o catolicismo (e o moralismo). Num momento está no pátio do seminário a implorar a Deus a conversão de Krushov e da Rússia comunista, no seguinte já a sua religiosidade foi abalada pela fotografia de uma sex symbol italiana. Accio abandona o seminário, o mau filho à casa torna. A cama dele já foi ocupada pela irmã do meio. Terá de dormir no corredor, entre esta mal remediada família, típica do neorealismo italiano, um pai operário, uma angustiadíssima mãe que nunca ri (assombrosa a actriz Ângela Finocchiaro), e o tal irmão de olhar magnético (Riccardo Scamarcio, já considerado uma estrela em internacional ascenção)...

Mano a mano
Numa pequena cidade de arquitectura fascista, criada por Mussolini, povoada por Fiat 500 brancos (como no Fellini), vemos o agregado a caminhar em conjunto, na estrada. Accio anda à parte. Ele segue por outros menos solares atalhos. Onde o irmão levanta o punho, ele ergue o braço em saudosistas salvas ao Duce. Refugia-se na casa de banho para ouvir discursos fascistas, ingressa em sinistras peregrinações ao túmulo de Mussolini, em excursões de provocação e desacato... Muda, mas não à força de sopapos (e Accio leva muitos). Ele é um ser em mutação. E daí a nada já o vemos num conservatório ocupado pelos estudantes, numa acção de «desfascização» de Beethoven. Porque o compositor «é imortal mas não imutável», e o novo libretto de o Hino da Alegria diz «Mao Tse Tung, Marx, Trotsky, Lenine, Staline marcham orgulhosamente contra o sol poente»...
E afinal porque tomamos nós partido por aquele que o troca como quem muda de camisa, da negra para a vermelha? O que pode ter de sedutor este jovem destituído de sedução, de coerência, de consistência ideológica? Porque se torna ele, aos poucos, o nosso irmão preferido, o que se curva a comer a sopa preparada pela mãe, enquanto na TV passam as exaltantes imagens da Sorbonne ocupada do Maio de 68? Porque torcemos para que este mereça a rapariga? Accio é mais inflamável do que a política, tão volátil como os tempos em que vive – que fazem lembrar o nosso PREC, mesmo àqueles que não têm qualquer hipótese de se lembrar dele. Manrico queria encontrar uma saída para o mundo. Accio apenas uma entrada. O que não deixa de ser legítimo. Além de profundamente humano. É o quarto «ismo» que lhe faltava nas suas metamorfoses internas de ideologias desdoutrinadas: humanismo.

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