segunda-feira, 8 de outubro de 2007

Terapia de choque

O Julgamento, de Leonel Vieira



Antes de tudo, uma suspensão. Uma ocorrência súbita de pensamento, uma associação de ideias. Do novo filme de Leonel Vieira, O Julgamento, que se passa em Portugal, nos tempos da Guerra Colonial e na actualidade, à velha (e eterna) peça de Brecht, Mãe Coragem, que se passa, algures na Europa, durante a Guerra dos 30 anos, no século XVII. Há uma cena na peça em que um soldado irrompe pelo palco a barafustar, a insurgir-se, quer falar com o capitão. E grita: «Eu não suporto injustiças». A Mãe Coragem vira-se para ele: «Por quanto tempo?», pergunta-lhe. «Por quanto tempo não suporta injustiças, uma hora, talvez duas...? É preciso saber, antes que vá parar à prisão, depois de lá estar descobre que afinal até suportava injustiças». É uma das questões capitais de todos os tempos, de todos os lugares, de todas as guerras, de todas as vinganças, de todas as resignações: Por quanto tempo não se suporta uma injustiça? Trinta e sete anos, no caso do filme de Leonel Vieira.

Julgamento conta a história de um ajuste de contas com a História recente do país. Uma espécie de catarse, um resgate do passado, uma terapia de choque, se quisermos. Três amigos, um professor universitário (Júlio César), um médico cirurgião (José Eduardo) e um engenheiro político (Henrique Viana, falecido após a rodagem) têm a oportunidade sonhada de um dia se confrontarem com o PIDE (Carlos Santos) que, trinta e sete anos atrás, os interrogara, os torturara e lhes matara um quarto camarada. Um thriller psicológico, que se move neste equilíbrio precário entre os torturados que se tornam torturadores, a justiça que se torna vingança, o passado que eles não deixam tornar-se... passado. «Era uma história fechada numa caixa que precisava de sair cá para fora», comenta o realizador, que também foi produtor do filme. Leonel destapou-lhe a tampa, mas reabrir feridas é diferente, «não tenho espírito de missão, não sou pessoa de defender causas perdidas». E em Julgamento nota-se esta quase, dir-se-ia impossível, ausência ideológica. Não há referências partidárias, a contextualização política está reduzida ao mínimo, todo os flash-back do tempo da ditadura, num preto e branco granulado, nos são dados com uma economia narrativa muito cinematográfica. Leonel Vieira é um realizador de grandes e aproximados planos, de ritmos certos e acelerados e adicionou-lhes, como ele diz, «ingredientes de entretenimento», a excelente actriz Alexandra Lencastre, Fernanda Serrano e Bárbara Norton de Matos (o filme foi apoiado pela TVI). «Estou muito contente com este filme. Podem dizer que digo sempre isto. Mas desta vez digo e sinto», acrescenta. E, agora acrescentamos nós, este é, sem dúvida, o melhor filme do realizador da Zona J, da Selva e do produtor do Filme da Treta.

Julgamento remete-nos automaticamente para outro filme, A Noite da Vingança, de Roman Polanski, baseado numa peça de Ariel Dorfman. Neste, uma mulher (Sigourney Weaver), no pós-ditadura de um país da América Latina que se presume o Chile, reencontra e sequestra um muito amável e prestável cidadão (Ben Kingsley), quando nele reconhece o algoz que lhe assistia à tortura. O médico que decretava até que ponto o seu corpo aguentaria mais choques eléctricos e espancamentos sistemáticos, que citava Nietzsche punha a tocar a «Morte e a Donzela», de Schubert, enquanto a violava. O realizador não só aceita a remissão, como assume as influências: «Desde que vi o Polanski fiquei com vontade de fazer um filme que se concentrasse em actores, com poucos décors, sem grandes artifícios, como se fosse uma peça de teatro. E também que funcionasse como um alerta para a minha geração, que não tem consciência alguma do seu passado».

Claro que nem a ditadura portuguesa teve a ferocidade da chilena nem Leonel Vieira é Roman Polanski. Os «nossos» PIDES cometeram as maiores atrocidades, estão mais do que documentadas, mas no marcelismo, que alguns abusivamente chamaram primaveril, já não se torturavam presos políticos com pancadaria desenfreada nem com choques eléctricos nos genitais – sobretudo se fossem estudantes lisboetas. Em Julgamento usam-se velhos métodos numa época que já se dizia nova, ao abrigo de uma mais que admissível liberdade criativa do autor. Talvez fosse dramaticamente mais interessante não diabolizar em demasia a personagem – como se não lhe bastasse ter sido da PIDE, ainda atropela criancinhas. De resto, André Gago é um convincente inspector/torturador, que reaparece anos mais tarde, já na pele do outro actor, com um bigode à Artur Agostinho e um sotaque brasileiro emprestado pelos anos de exílio, que se seguiram à famosa fuga colectiva da prisão de Alcoentre e à brandura generalizada dos costumes.

E se a «tortura do passado» nos é dada através de uns 30 segundos, flashs entrecortados por sombras e gritos, embora de forma absolutamente explícita, a «tortura do presente» ocupa mais de uma hora de filme. O realizador quer provocar o «efeito espelho», explica, para que nos versos se vejam reversos, em vítimas do passado os carrascos de agora e na legítima justiça uma ilegítima vingança. Apesar de tratar de uma forma absolutamente benigna estes justiceiros de mão-própria – dois deles terão o desfecho redentor que merecem. Como se as suas vidas estivessem à espera deste último número para saldar de vez as contas do balanço.

E afinal, «vingança e justiça, podem andar juntas?». «É uma questão delicada», hesita Leonel Vieira. Tanto mais que, como diz o PIDE no final do filme antes de uma hollywoodesca aparição da GNR num campo alentejano, muito ao estilo Sétima da Cavalaria: «Vês, como as coisas podem mudar de um momento para o outro?».

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