segunda-feira, 30 de abril de 2007

De amor, de luz e de sombra


El Amarillo, de Sérgio Mazza. Love Conquers All, de Tan Chui Mui. Le Dernier des Fous, de Laurent Archard.


Dois filmes da Competição Internacional premiados no INDIELISBOA. E um que ficou por premiar.






Há um vulto que desembarca, nas margens de um rio. É de noite, e de noite todos os homens são vultos. Este vai continuar a sê-lo, mesmo quando clarear. Até no final do filme, ele continua a ser o vulto do princípio. El Amarillo (Sérgio Mazza), a longa argentina premiada no Indie, começa assim: com um homem a chegar. Não se sabe bem de onde, nem por que chega durante a noite. Nem para onde vai, nem o que quer. Apenas pergunta ao barqueiro para que lado do negrume é que estão as casas. Uma câmara à mão, sem iluminação artificial, segue-o por um caminho. Só ele, a escuridão, o barulho dos animais nocturnos e o dos próprios passos. E este homem-vulto tem qualquer coisa de borboleta nocturna, atraída pelas luzes das casas. Aproximam-se tanto até se lhes arderem as asas – esta é só a metáfora preferida de Goethe, não tem nada a ver com o filme. Porque o homem se guia mais pela música que se despega de uma das casas do que pela luz. É a voz e a viola de Gabriela Moyano, num cabaret decadente de uma pequena cidade da Argentina profunda. Daquelas terras de tempo parado e solo vermelho. Onde as horas se derretem, ao ritmo indolente dos gestos, das moscas que se enxotam, do calor que entorpece, dos acordes que a mulher arranha. E dentro de um ambiente real, que é quase documentário, passa-se a história ficcional, de uma simplicidade que desconcerta. O forasteiro apenas quer quebrar o gelo – se fossem admitidas gélidas imagens em tórridas paragens. Quer romper a indiferença, mas sem se intrometer, sem se insinuar quase nada. Aceita pequenas tarefas das mulheres velhas do bordel, carrega sacos das compras, desentope-lhe a latrina, apresenta os serviços das prostitutas. E muito devagar, subtilmente, quase sem se dar por nada – e esta ociosidade narrativa faz parte do encanto do filme – há um homem e uma mulher que se aproximam. Não sabemos quem são nem o que querem. Mas ficamos com a certeza de que a partir daqui vão ser mais felizes.





O outro filme premiado (ex-aequo) vem da Malásia e chama-se Love Conquers All (Tan Chui Mui). Também é uma história de um encontro, mas sem a leveza nem a delicadeza do primeiro. Não tem grandes rasgos estéticos. Nota-se demasiado aquele apego que certos realizadores sentem em relação a alguns planos, e não conseguem dispensá-los, mesmo que isso adense a fluência e até cause atrito. Mas é interessante a forma como, na história, o destino se insinua, e a mulher segue pela mesma estrada, inevitavelmente, mesmo que lá atrás tenha avistado sinais de perigo, e de trânsito cortado. É outra vez a parábola da borboleta atraída pela chama. Só que neste filme, acaba por incinerar mesmo as asas.



Le Dernier des Fous, do francês Laurent Archard, não ganhou prémio nenhum e é pena. Foi a primeira obra seleccionada pela organização do festival e é a dilacerante história de uma família rural que acompanhamos já em fase de pós-colapso. «Pós» porque ainda há mais por onde estilhaçar, por onde ruir, por onde despedaçar. Martim é um menino de 11 anos, de aparência débil e um modo de andar envelhecido, de braços inertes e desistentes. O realizador diz que o escolheu, no casting, pelo seu olhar indecifrável e imperturbável – e isso numa criança consegue ser muito perturbador. Estamos habituados a ver filmes sobre a inclemência das solidões infantis em cidades, em torres opressivas de betão, em bairros suburbanos. É mais raro falar de solidão de uma criança em espaço aberto, numa quinta, rodeadas de bosques, bichos e lagos. Embora o casarão cheio de janelas tenha o seu ar sombrio, e de há muito estar desabitado de amor. Neste filme sem música (nem no genérico), há uma mãe que vive fechada num quarto. Um pai passivo, uma avó ríspida, um irmão atormentado, que oscila entre a ternura e a violência, uma empregada magrebina (a única personagem saudável da família). E depois há uma amiga que é crescida demais para ele. E ele é Martin, um menino que espreita e não chora. O realizador diz que «o cinema existe para mostrar e não para explicar». Esta é uma decadência familiar, sem esclarecimentos prévios, nem póstumos. Sem argumentos. E o que se mostra, de uma forma despojada de retóricas psicológicas ou sociológicas, são apenas prenúncios, que alimentam a inquietação de quem vê. Uma doninha apodrecida devorada pelos corvos, a miúda que sustém a respiração no rio e faz soltar a única lágrima do filme, a mochila da escola que se atira ponte abaixo, o gato atropelado guardado na arca frigorífica, o revólver encontrado numa gaveta... Está ganho um filme quando consegue fazer despegar as personagens do papel aonde foram escritas. E ir sedimentando a tensão, em camadas, até a um pico que parece tão imprevisível quanto inevitável. Como se houvesse uma única maneira de aplacar aquele caos.

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