sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Woody regressa a casa


Tudo pode dar certo, de Woody Allen







Já vimos este filme, mas pouco nos importa, queremos vê-lo vezes sem conta. Woody Allen voltou a Nova Iorque e nós sentimo-nos em casa, Tudo pode dar certo é o seu melhor filme desde Matchpoint. A melhor comedia desde Poderosa Afrodite. Uma comedia pura de rir e chorar por mais. Ironicamente nós, europeus, sentimo-nos mais próximos do Allen de Nova Iorque do que aqueloutro de Barcelona ou mesmo de Londres. Talvez por o cinema, pela sua indústria, nos ter aconchegado na América, mas também porque é ali que o autor de Manhattan faz mais sentido. Dá a ideia que se reconciliou com o mundo, tal como NY, aos pouco se vai reconciliando consigo própria após o 11 de Setembro. Mas na verdade, a única coisa que aconteceu, foi que Woody Allen resolveu resgatar um guião que estava perdido na gaveta há três décadas.

Logo a primeira cena do filme é uma imagem comum em Allen. A câmara vem do céu e desce sobre um grupo de homens, de calções, que conversam numa esplanada e pedem que Boris (o alter-ego de Allen, representado por Larry David) conte a sua história. Mas logo ali tem um pequeno golpe engenhoso. Boris assume-se como protagonista do filme reconhecendo a plateia. O estratagema, obviamente, não é novo, remonta a Pirandello e tem sido usado aqui e ali como no caso de Funny Games, de Michael Haneke. No contexto alleniano pode ser visto como o reverso de Rosa Púrpura do Cairo, na extraordinária e mágica obra de 1985, Mia Farrow apaixona-se pelo actor e entra pelo ecrã adentro. Aqui a mistura entre realidade e ficção dá-se de forma oposta: é o actor que sai pela sala a fora e nos interpela directamente.

Isso ajuda a construção de uma personagem que Allen talvez já tenha interpretado, mas nunca de forma tão veemente ou radical. Boris está zangado com o mundo. O seu pessimismo realista é completamente destrutivo, não só de si próprio como de tudo o que o rodeia. E a sua arrogância intelectual é ilimitada. Um intelectual rezingão sem papas na língua que, como qualquer outro monstro, encontra a sua bela, que o transforma, que o desconstrói e quase destrói.

A arrogância de Borisé plenamente justificada e testemunhada por nós, espectadores. Porque ele é a única personagem que convive connosco, sabe da nossa existência. É por isso que vê mais do que os demais, é um iluminado, um visionário. As suas doutrinas, assim, ganham consistência na medida em que, connosco, é ganha a cumplicidade, directa, única e inabalável. Essa comunicação com a audiência faz com que, apesar da sua rezinguice e má-criação, do seu fel, nos sintamos mais próximos de si do que de outras personagens simpáticas e agradáveis.

Curiosamente, a história de Boris sustém uma filosofia de vida resumida no título do filme (em inglês, Whatever Works). Que é uma teoria de descomplicação, contrária à elaboração vulgar em Allen, em que tudo se torna absurdamente complexo. Aqui é defendido, pura e simplesmente, o quer que funcione, seja a relação entre um velho intelectual mal-disposto e uma semi-adolescnte provinciano, seja um casamento gay, seja um ménage a trois. Complicar para quê?

O guião é habilidosamente escrito, com diálogos ao melhor nível. Estão aqui algumas estiradas que, seguramente, vão passar a figurar nas listas de citações de Allen que abundam na Internet. Um sarcasmo hilariante, que tudo corrói até a sua própria racionalidade. Já há alguns anos que estávamos sentados, naquela esplanada encalorada de Nova Iorque à espera que Woody Allen chegasse. É bom tê-lo de volta.

Sem comentários: