quarta-feira, 25 de março de 2009

O homem que rosna

Gran Torino, de Clint Eastwood













John Ford tinha dois actores que amava. O duro e plástico John Wayne, e o humano e sensível Henry Fonda. Consoante o actor escolhido ficávamos a saber de que tipo de filme se tratava. O universo de actores de Clint Eastwood é imensamente mais vasto, vai de Kevin Costner a Angelina Jolie, mas tem a sorte de, sempre que é preciso contar com um grande, grande actor. Um actor chamado Clint Eastwood.
Gran Torino é feito dele para ele. Um filme sobre a solidão e a velhice, sobre a cruel passagem do tempo, numa assumpção metafórica e porventura exorcizante da finitude, elevada ao extremo: em que o realizador filma a sua (salvo seja, a da personagem) própria morte.
O actor Clint Eastwood brilha com esplendor no papel de um velho duro e rezingão que, como todos os velhos duros e rezingões do cinema, revela-se, no final de contas, extremamente humano. Teimoso, depois da morte da mulher, insiste em manter-se na sua casa de sempre, apesar do bairro ter sido tomado por coreanos e ele sentir-se um estrangeiro na sua próprio lar. Walt Kowalski está decidido a manter o seu caminho recto, fiel, impenetrável, e resistente aos meio-ambiente hostil, assim como o Ford Grand Torino 1977 que guarda polido e imaculado na garagem.
A realidade em volta é cruel: filhos e netos afastam-se, antecipam a herança; o tempo esculpe e destrói o mundo em volta; ele, que foi um ex-combatente da guerra da Coreia, tem agora que gramar com os vizinhos asiáticos; e, para cúmulo, o novo padre é apenas um miúdo acabado de sair do seminário. Perante isto, pragueja, nos mais hilariantes falas, ao nível de um Samuel L. Jackson de Pulp Fiction, mas com o mais prosaico sentido irónico e amargo. Pragueja contra tudo e todos num discurso aparentemente xenófobo, mas que mais tarde é descodificado. Ofende gregos e troianos, que é como quem diz, coreanos, irlandeses, porto-riquenhos, negros, judeus. Mas tudo se dilui num cumprimento original, quando se entende que ele próprio, Walt Kowalski, é tratado como «hard-nosed pollock son of a bitch», numa amável «troca de galhardetes» com o barbeiro italiano. Uma alusão clara, bruta e inteligente a uma América feita por emigrantes (apenas uns são mais recentes do que outros).
Aos poucos a sua dureza de cowboy vai sendo quebrada pelo meio-ambiente, à medida que as injustiças do seu pequeno mundo estimulam o seu instinto de xerife, de herói, de Dirty Harry. Atéa um limite em que a insistência religiosa do filme de regozija na ideia de mártir.
Há dois elementos-chave para o entendimento de Gran Torino. Ambos pormenores de génio de Eastwood. Os dedos colados que simulam uma arma, como num brincadeira de crianças. O gesto repete-se ao longo do filme. Mas esse diferença entre o ser e parecer alegórica e real é determinante para o desfecho. E a própria personagem de Walt é enriquecida pela dicotomia: ser/parecer.
Por outro lado, o mais brilhante pormenor de interpretação, revelado de um mundo interior em ebulição: Walt rosna mais do que a sua cadela, num regurgitar que poderia apenas ser traduzido por «mau-feitio», mas que revela sobretudo as mossas de uma vida cruel, em que a solidão de um fim que se aproxima por vezes pode ser mais dura do que a mais violenta das guerras..
Em A Troca, Eastwood desenhou um clássico rebuscado, uma grande produção, cheia de elementos díspares, alguns megalómanos, num hábil cruzamento de estilos. Em Gran Torino aposta numa história simples repleta de elementos comoventes, centrada numa personagem com uma densidade comparável a Dirty Harry (1971). E se há quem diga que os filmes são sobre os seus últimos quinze minutos. Gran Torino é então uma obra maior.

2 comentários:

Margarida D. disse...

Também é um filme sobre crescer. Há um miúdo que precisa de crescer- e para tal precisa de ser iniciado. Há um velho que precisa de envelhecer em paz e para isso também precisa de passar por um processo de (re)iniciação...
Margarida D.

Viva La Vida disse...

Caso para dizer:
GRAN(DE) TORINO.

Ana Margarida Catuna