quarta-feira, 29 de outubro de 2008

O imperfeito do conjuntivo

A Turma, de Laurent Cantet

Num filme excepcional, cheio de luta de classe(s) e ambiguidades, Laurent Cantet conseguiu o que muitos tentaram: abrir a caixa negra da escola


É um documentário? Sim. É uma ficção? Também.
É um filme sobre um microcosmos de uma turma parisiense? Sim. É um filme sobre a sociedade global? Também.
É um filme sobre a adolescência? Sim. É um filme sobre todos nós? Também.
É um filme sobre um liceu multicultural, densamente povoado, cheio de energia e agitação? Sim. É um filme sobre a solidão e o vazio? Também.
É um filme sobre a liberdade de expressão? Sim. É um filme sobre a repressão? Também.
É um filme sobre a utopia da democracia? Sim. É um filme sobre a autoridade? Também.
É um filme sobre o caos? Sim. É um filme sobre a disciplina? Também.
É um filme sobre a integração? Sim. É um filme sobre a exclusão? Também.
É um filme sobre a comunicação? Sim. É um filme sobre os equívocos da linguagem? Também.
É um filme sobre relações humanas? Sim. É um filme sobre placas tectónicas, que às vezes chocam, e vibram sobre os nossos pés e outras se aquietam e não deixam prever o próximo e violento tremor? Também.

Em que é que ficamos? Ficamos algures no imperfeito do conjuntivo – e das conjunturas. Era bom que este filme, A Turma, de Laurent Cantet (Palma de Ouro em Cannes) «fosse visto». Não para aprender as conjugações verbais que os miúdos acham que são «coisas da Idade Média» que os professores arranjam para os maçar: «Nem a minha avó fala assim», diz uma aluna, quando o professor de Francês tenta explicar a utilização do Imperfeito do Conjuntivo, em A Turma. Não só para assistirmos a uma demonstração de virtuosismo de um realizador que consegue unir paradoxos e fazer de um lugar comum – a escola – um objecto cinematográfico incomum. Mas também para vermos, enfim, para além dos muros escolares.

No início do filme há um professor que bebe, de um trago, um café, como que a ganhar coragem. Sabe que será o último café antes do início do ano lectivo. O último café da liberdade. A única cena do filme passada fora dos muros escolares. A partir daí será sempre Entre Les Murs. O título original do filme oferece muitas mais dimensões. Não só descreve todo o dispositivo narrativo, como nos dá a ideia de reclusão que vai na cabeça de um adolescente, forçado a estar entre quatro paredes, concentrado durante seis a oito horas em conteúdos lectivos, enquanto lá fora todo um mundo acontece. Mas há outras clausuras. A do professor, único adulto, ser minoritário largado num mundo de 25 adolescentes provocadores. Ensanduichado, com a turma pela frente e a lógica do sistema por detrás... E outros muros que o filme transpõe para se situar, exactamente no meio, entre o documentário e a ficção. Também a câmara de Cantet nunca nos dá profundidade de campo: o professor é filmado sempre do mesmo ângulo – entre a espada e a parede (neste caso, o quadro da aula), e a turma encurralada ao fundo da sala. Até as cenas passadas no pátio estão circunscritas pelos muros altos. E o livro escolhido pelo professor para leitura na turma é o Diário de Anne Frank, o paradigma da adolescente emparedada.

François Bégadeu é este professor de Francês que interpreta o seu próprio papel. Além de docente (serviu-se da sua experiência para escrever o romance A Turma que serviu de ideia ao filme), é crítico de cinema, jornalista, escritor, comentador desportivo, vocalista numa banda punk... Todas as quartas-feiras à tarde, durante um ano lectivo, Cantet e Bégadeu organizaram no liceu Dolto (no 20º bairro parisiense), um atelier livre de representação para os alunos. Inscreveram-se uns 50 miúdos, aos poucos, metade foi deixando de aparecer. Os que constituem a turma do filme foram os que ficaram até ao fim. Por isso, explica Cantet, à VISÃO, ele não seleccionou, propriamente, o casting: «Tive a impressão de que foram eles que se escolheram a si próprios». Os alunos nunca leram o guião, «isso garantia que eles usassem a sua própria linguagem». Durante as sete semanas de rodagem (cinco para as cenas da turma, duas para as cenas entre os professores), o realizador dava algumas instruções precisas a certos alunos (às vezes a partir de elementos que eles próprios forneciam). Bégadeu induzia as conversas, tal como os professores costumam fazer. A partir daí, começava a improvisação. Havia três câmaras na sala de aula, uma sempre apontada ao professor, outra ao aluno incumbido da tal missão específica, a outra destinava-se a apanhar o que quer que se passasse, «detalhes do quotidiano de uma turma que nunca conseguiríamos reconstituir», alguém que tomava a palavra, um olhar distraído, os gestos, o balançar de uma cadeira, as risotas, o uso do telemóvel por baixo da carteira, o soprar de uma piadinha ao colega do lado, e «outros pequenos acontecimentos que faziam oscilar a cena»...

Quase todos os alunos, os professores e os pais dos alunos são reais e usam os seus próprios nomes, as suas próprias roupas, as suas próprias palavras. Com excepção de Souleymane, o adolescente do Mali, que, a dada altura, há-de tornar-se no centro da história. Ele e a sua mãe são as personagens mais ficcionais do filme.

O professor é uma figura fabulosa. «Não é um super-homem, também se engana», mas tem uma «forma particular de fazer face à turma». Não segue a via mais confortável, «não se protege atrás de um estatuto de professor intocável que comunica um saber, dá as lições e manda fazer exercícios». Ele corre o risco de se confrontar com os alunos. Sem nunca abdicar da autoridade, sujeita-se à insolência, às pequenas rebeliões, às perguntas indiscretas, a mal-entendidos, às várias tensões culturais e até religiosas, numa espécie de pingue-pongue verbal, muito socratiano. Não volta as costas, disseca os comentários dos alunos, ironiza, entra no jogo retórico, em que muitas vezes o que conta é ter a última palavra – «é um jogo em que os adolescentes são excelentes e os professores são, muitas vezes, para aí empurrados». A sua frontalidade desconcerta os alunos, sempre desafiadores. Ele tenta seguir pelos instáveis carris da democracia. A utopia descarrila quando choca frontalmente com o sistema. Sim mas também...

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