quinta-feira, 10 de maio de 2007

Lapso Fordiano

Directed By John Ford, de Peter Bogdanovich



Bogadanovich: ‘Qual o sentido da porta que se abre para Wayne no início e se fecha sobre ele no final?’ John Ford: ‘Hummmm...’

Lembro-me de uma crónica antiga do Miguel Esteves Cardoso. Já não sei sobre que tema. Sei que a certa altura, alguém, depois de estar um tempo a falar com um rapaz muito estúpido, tinha que ir para casa a correr ler um livro. Como um jogo de compensações. Ou um processo de repor os níveis de inteligência perdida. Ou de indemnização instantânea de débitos cognitivos. É o que acontece depois de quase duas semanas só de saldos negativos nos visionamentos: precisa-se urgentemente de alguma coisa que revogue o passivo e faça recuperar os coeficientes de satisfação cinematográfica. Por isso, ainda bem que existiu o Indie. E ainda bem que havia a secção Director’s Cut (uma mostra de clássicos restaurados pelos próprios realizadores e que reflectiam sobre o próprio cinema). E ainda bem que passaram Directed By John Ford, o documentário, agora revisto e aumentado, de Peter Bogdanovich.

Não deixa de ser interessante ver John Ford – o realizador de mais de 140 filmes, intimamente ligados à indústria cinematográfica dos grandes estúdios e à mitologia americana do velho Oeste – integrado num festival de cinema independente. É um lapso fordiano.

Seja como for, é para isso que servem os clássicos. Para a gente regressar a eles, de vez em quando. Porque, segundo uma definição antiga, os clássicos são aqueles que nunca acabam de dizer o que têm para nos dizer.

Directed By John Ford, o lendário documentário sobre o também lendário realizador, remonta a 1971. Tinha então depoimentos de John Wayne (cujo centenário se festeja agora), de James Stewart, de Henry Fonda, de Maureen O’Hara, a actriz fetiche de Ford, e a voz off de Orson Welles – o tal a que quando perguntaram sobre as suas referências deu a famosa e tríptica resposta: «Ford, Ford e Ford». Além da tão célebre entrevista ao realizador, him-self, sentado numa cadeira, no seu set preferido: o fotogénico Monument Valey, entre o Arizona e o Utah, que miniaturizava a figura humana e agigantava a dimensão épica dos Westerns. Aquela entrevista em que Ford com o seu proverbial mau feitio, desatende as perguntas de Bogdanovich. Faz «grunfff», «hum-hum», olha para o lado, diz «corta!»... E quando aquele lhe pergunta como é que fez a cena tal, Ford responde: «Com uma câmara...».

Trinta cinco anos depois, Bogdanovich recupera os depoimentos mas junta-lhes os de Scorsese, de Clint Eastwood, dele próprio (auto-entrevistado), de Spielberg...

Ford era irascível, atemorizava os actores, criava mau ambiente nas filmagens. Todos os entrevistados têm a sua «e daquela vez que...» Dizia-se que não revia as rushes, que não olhava para os guiões (a não ser quando queria cortar diálogos), que uma vez um enviado do produtor reclamou dos atrasos das filmagens. Ford agarrou no guião e rasgou dez páginas: «Pronto, agora já não estamos atrasados». E se não é verdade é como diz um director de jornal em O Homem que Matou Liberty Valence: «Estamos no Oeste, quando a lenda se torna facto publicamos a lenda».

Spielberg conta como em adolescente foi a um estúdio falar com um realizador televisivo. Que lhe disse «se te interessas por cinema tens de falar é com o meu vizinho do escritório da frente». Era John Ford. O jovem Steven aproximou-se da secretária onde Ford tinha os pés: «O que é que pensas que sabes de cinema?». Spierlberg balbuciou qualquer coisa. Ford mandou-o olhar para umas fotografias de westerns: «O que é que vês?». Steven respondeu um índio, um cavalo... Resposta errada. A linha do horizonte... Muito acima numa das fotos, muito abaixo noutra. Ford disse-lhe qualquer coisa como isto: «Quando souberes que a linha do horizonte nunca se coloca ao centro já sabes o que é o cinema»

Não terá sido a única lição de Ford a Spielberg. Há uma cena em O Vale era Verde (1941), em que os enegrecidos mineiros descem a colina a avisar da morte de um dos irmãos da família Morgan. A cena é muda e breve. Não há palavras. Apenas a premonição da mulher, que verga os joelhos e cai, ao aproximar da funesta comitiva. Pensei ao rever o filme numa cena do Resgate do Soldado Ryan (1998). Quando uma mãe vê ao longe, numa estrada rural, o aproximar de um carro oficial que vem trazer a notícia da morte dos filhos. Também não há palavras: só o pressentimento e os joelhos que dobram.

E do naif O Vale Era Verde a As Vinhas da Ira, ideologicamente nos seus antípodas – o documentário está cheio de excertos e de revelações sobre o making of dos filmes. Como as ventoinhas que Ford espalhou nas escadas da Igreja para fazer rodopiar o véu de noiva sobre a cabeça de Maureen O’Hara. Ou a vez em que Ford, sob protesto do operador de câmara, decide filmar debaixo de uma monumental tempestade – e assim nasceu uma das mais esmagadoras cenas da história do cinema, com Wayne a comandar um regimento, na última missão da sua vida militar, antes da reforma, em Os Dominadores (1949). E era cinzento-chumbo o céu de Monument Valey.

Inevitável a referência a A Desaparecida (1956), considerado o melhor westerns de todos os tempos. E àquela odiosa figura do Ethan de Wayne. Aquele gigante com quem tanto antipatizamos, no início, e tanto simpatizamos, no final - na sua crónica e mais do que inclemente solidão. No documentário, Peter Bogdanovich questiona Ford sobre a mítica cena em que através de uma porta sobre o deserto, Wayne segura o braço direito à moda de um actor antigo. Olha em frente, por momentos. Depois, vira costas. «Qual o sentido da porta que se abre para Wayne no início e se fecha sobre ele no final?» Responde Ford: «Hummmmm...»

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