quinta-feira, 5 de outubro de 2006

Trans(e)acção

Transe, de Teresa Villaverde




Não tem nada a ver com nada. Nem com o tema do filme, nem com o contexto da história, nem com o ambiente em que as personagens se movem. E no entanto, enquanto «desgravamos» a entrevista, vem-nos à cabeça, não tanto o olhar dilacerado da actriz Ana Moreira, mas aquela fotografia, que esteve sempre lá, na parede, a pontificar as palavras da cineasta Teresa Villaverde, 40 anos, como uma mensagem subliminar. É a fotografia, enorme, de uma favela em altura (exposta na Galeria Work and Shop), o esqueleto de um prédio esventrado, reocupado pelos «sem-casa» brasileiros. E que agora se intromete, insistente, enquanto se soltam as palavras da realizadora do gravador. Há sentidos que não buscamos, mas quase que nos são impostos. Há acasos tão perfeitos que parecem inevitáveis. Será por acaso que «acaso» e «caos» se escrevem com as mesmas letras? É que o filme Transe também fala de demolição – mas não urbanística. Também fala de fragmentos – mas não de betão. Também fala de degradação – mas não suburbana. Um prédio, em ruínas, suturado como uma cárie dentária mas que, no entanto, mantém a sua dignidade vertical. Uma vida feita em cacos, espalhados desarticulados pelo chão e que, no entanto, ainda mexe, ainda respira, ainda ergue a cabeça. Transe é, porventura, o título mais económico da história do cinema português. Porque na sua brevidade bi-silábica resume toda a carga polissémica que encerra: «transe» é a apreensão de um mal que se julga próximo; deriva para transitar que sugere viagem; é um momento difícil, de sofrimento intenso; é sexo na acepção brasileira de transar; tem o mesmo prefixo fonético de transação, de compra e vendas; é a passagem da vida à morte; é delírio; é sair de dentro do próprio corpo... E o filme de Teresa Villaverde é tudo isto – por esta ordem. Sónia (na interpretação assombrosa de Ana Moreira), uma jovem russa quer mudar de vida. Parte pela Europa fora ao Deus-dará. Mas Deus nada lhe há-de dar. Pelo contrário, tira-lhe o pouco que tem. Sónia é sonhadora, adormece. «Em tempo de guerra, ninguém pode dormir, ninguém pode chorar», diz uma personagem do filme. E esta, tinha dito antes, não é uma guerra entre países, é uma guerra entre os homens, «os mais fortes contra os mais fracos». Sónia cai na teia do tráfico sexual. A aranha suga-lhe os interiores, deixa-lhe o corpo intacto. Sónia é uma mulher despersonalizada. A escravidão, no século XXI. O Inferno, aqui. «O inferno é um cão a ladrar lá fora», diz Teresa Villaverde a citar Santa Teresa de Ávila.

AMC: Porque filmaste o inferno, aqui à face da Terra, aqui mesmo ao nosso lado?

TERESA VILLAVERDE: É importante perceber que cada época tem os seus problemas mas a violência, a capacidade de fazer mal são coisas recorrentes, que atravessam séculos e vêm desde sempre - e provavelmente para sempre. É uma coisa que faz parte da nossa natureza.

É a maldição da condição humana?
É uma nossa característica, sim. Tornar a vida dos outros num inferno. Quando acabou a Segunda Guerra e se viu o que aconteceu nos campos nazis, pensou-se ‘isto não vai voltar a acontecer’. Mas ainda recentemente, aqui ao lado, na ex-Jugoslávia pudemos ver que é mentira: todo o horror volta a repetir-se. Numa escala diferente, dirão. Mas o que interessa a escala para quem está a viver o horror? Nós às vezes esquecemo-nos mas somos mamíferos, como os outros, e dentro dessa classe, somos os piores. Em todas as outras organizações de animais há regras, sabe-se quando e porque lutam. Ou para acasalarem, ou para se comerem. Mas nunca ‘porque sim’... Ao passo que o homem é imprevisível, podemos ser vítimas de um momento para o outro. E nunca saberemos porquê. Porque é que nos fizeram isto?

Em Os Mutantes [1998], à excepção de Ana Moreira, usaste miúdos da Casa do Gaiato ou da Casa Pia, em vez de actores profissionais ou mesmo de alunos de liceu, porque «tinham outro olhar». Porque não recorreste agora a mulheres prostituídas ou fugidas do tráfico sexual?
Com este filme foi completamente diferente. Não conheci nenhuma mulher que tivesse passado por isto. Li muito, reportagens, livros, não só sobre a escravatura sexual, mas sobre o tráfico de pessoas. Falei, sim, com pessoas que trabalham em contacto com mulheres que conseguiram fugir destas redes. Cheguei a pedir um encontro com uma delas mas depois não quis.

Ana Moreira diz que só conheceu esta questão da escravatura sexual através dos teus olhos, para não se deixar contagiar pela imagem de uma mulher real...
Pois, foi mesmo assim. Às vezes, precisamos mesmo de falar com pessoas para tentar perceber como é. Mas este tipo de horror é fácil de perceber e de intuir. É uma situação tão violenta, tão ultrajante... Achei que nem o filme nem eu ganhávamos nada com isso. Pelo contrário, não queria fazer-me passar pelo papel de agressora, estar a intrometer-me na vida de pessoas que ainda estão a tentar reorganizar-se.

Mas para reconstituíres aquele bordel italiano não sentiste necessidade de ir ver como funcionam?
Interessava-me mais um ambiente que dramaticamente servisse o filme do que propriamente estar à procura de um décor muito realista, não era por aí... Preferi uma coisa mais despida possível, até para o espectador não se distrair com nada. Quando se fala em escravatura sexual as pessoas tem tendência em pensar em bares de alterne. Não tem nada a ver. Estas casas são de uma violência tal, que o espaço quanto mais neutro for melhor, para não distrair, para que se olhem só as pessoas, que é o que interessa

Aquele bordel tem um ar muito irreal, quase feliniano e teatral, as cores, as bolinhas de luz a deslizar pela parede, as portas por onde se entra e sai, a claridade...
Para mim importante foi filmar as cenas do salão de dia. Sente-se um maior desconforto porque aquilo se passa sempre de dia. Ao longe, das portas avista-se a luz, o sol entra pelas frinchas. Isso ajuda à tristeza e à solidão geral. Também a dos homens. Chegam ali de carro, a meio da tarde, falam com mulheres que não percebem nada do que dizem... Ser de dia salienta ainda mais o absurdo. Há o cliché da noite associada a estes ambientes. Mas se calhar, de noite, esses homens regressam a casa para a mulher e filhos... Dramaturgicamente quis que fosse sempre dia. O que faz haver vida no nosso planeta é o sol. Quando se está assim, preso, de dia é mais fácil imaginar a vida lá fora.

Como acontece com as pessoas deprimidas, que ficam pior na Primavera, porque é um contraste muito grande entre o que elas sentem lá dentro e a vida lá fora...Ou como quando a gente vai a um enterro no Verão e os familiares estão bronzeadíssimos... Faz imensa impressão, esse contraste...

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