quarta-feira, 19 de março de 2008

Este país é para velhos

Amor nos Tempos de Cólera, de Mark Newell



Uma trágica adaptação de Amor nos Tempos de Cólera – no sentido menos dramatúrgico do termo


Um esperou 51 anos, 9 meses e 4 dias por uma mulher – e ainda bem porque é Florentino Ariza, personagem do segundo mais célebre livro de Gabriel García Márquez, Amor nos Tempos de Cólera. Outro esperou três anos pelos direitos da obra – e ainda mal porque é o produtor americano do filme que nesta quinta, dia 20, chega às salas. O que só prova que a persistência nem sempre compensa.

Cada leitor faz o seu filme dentro cabeça. E a grande sorte é que estes filmes privados não são nunca exibidos num cinema perto de nós. O que saiu da cabeça do realizador inglês Mike Newell (Harry Potter ou Quatro Casamentos e um Funeral) e do argumentista sul-africano, já muito rodado em Hollywood, Ronald Harwood (A Pianista ou As Paixões de Júlia), devia vir com a advertência «não recomendado a leitores com fraca tolerância ao sentido do ridículo».

Publicado em 1985 (três anos depois do seu autor ter recebido o Nobel), Amor em Tempos… conta a história de um telegrafista e violinista que, no dealbar do século XX, faz uma promessa de amor eterno – e cumpre-a. Mas onde se lê sobre um amor maníaco e excessivo - o filme detém-se no maníaco. Onde se fala de um compromisso que desafia os limites do corpo e do coração – o filme foca-se nos do corpo. Onde se trata de penitência amorosa, de fidelidade platónica, de paixão impávida, de paciência monástica, de obstinação paranóica – do filme só se extrai a parte da paranóia. O livro acompanha um homem que faz uma travessia de um deserto, ao longo de meio século – o filme permanece na mais pura desertificação emotiva.

Esta é a primeira vez, desde há mais de duas décadas que uma grande produção é filmada em Cartagena, na problemática Colômbia. Mas nenhuma desta ousadia geográfica transparece na tela. E a falta de intimidade deste britânico realizador com a realidade latino-americana sente-se logo às primeiras cenas. A começar na opção de usar uma língua comercialmente viável, apesar de todo o elenco ser latino (o espanhol Javier Bardem, a italiana Giovanna Mezzogiorno, a brasileira Fernanda Montenegro, a mexicana Catalina Sandino Moreno). Tudo a falar num inglês espanholado (inglenhol?), ao estilo porto-riquenho do West Side Story. Não deve haver um filme em que tantas vezes se pronuncie a palavra love, com o «o» acentuado, e lá se vai metade do romance.

Rapidamente os tempos de cólera evoluem para pandemia, o oscarizado Javier Bardem - na pele de Florentino - contribui para a propagação do contágio. Fernanda Montenegro (faz de sua mãe) descreveu-o como «um toureiro que sai sempre vivo da arena». É verdade que o actor sai vivo, mas bastante maltratado. E a caracterização não ajuda. Se em Este País Não É Para Velhos, Bardem era um maníaco de cabelo à tigela, aqui também é um maníaco, mas de risco ao meio à Paulo Bento. A banda sonora é da colombiana Shakira (uma sugestão, diz-se, de García Márquez) e a sua maior virtude é compor-se de apenas três músicas.

Toda a magia e encanto garciamarquiano é varrido para fora de cena, o realizador deixa-nos entregues aos clichés de melodrama mexicano. Florentino torna-se um ser tristemente caricato, pungentemente ridículo e infantilizado. Não consegue manter-se virgem – porque as colombianas não o permitem (as mulheres saltam-lhe literalmente para cima), e ele é um homem solícito... Algumas inestéticas – e respectivamente contabilizadas no seu livro de recordes- cenas de cama depois, eis que se chega à (também inestética) cena de sexo septuagenário. Personagens de García Márquez privadas de humor e dignidade. O que lhes resta?

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