sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

Com firma reconhecida

             Contrato, de Nicolau Breyner






A história de um Contrato cumprido e de um outorgante criminoso, tão honesto como o filme em que representa







A tripla mais-valia deste filme vem logo no genérico – e quase que arriscávamos dizer que só regressa, duas horas depois, nos créditos finais, se, pelo meio, não houvesse a satisfatória sensação de um contrato cumprido com o público. Quando no cinema português proliferam vanglórias promessas, improcedentes presunções e soberbas ostentações, é reconfortante ver que o Contrato (estreia-se hoje, 15), primeira experiência cinematográfica de Nicolau Breyner, não «correu perigos nem guerras esforçados», nem mais do que prometia a força humana... E pode não ter passado além da Trapobana, mas chegou exactamente ao ponto a que, explica o próprio Nicolau à VISÃO, pretendia chegar: «Um filme negro que entretivesse as pessoas.»


Breyner, McShade & Freire
A história baseia-se «livremente» na novela policial assinada por Dinis Machado (perdão... por Dennis McShade), Requiem para D. Quixote, publicada sob pseudónimo em finais dos anos sessenta. Uma primeira abordagem ao argumento foi feita por Pedro Bandeira Freire, cinéfilo e ex-director dos já extintos cinemas Quarteto. E Nicolau Breyner, amigo pessoal de ambos – o actor mais habitué do cinema português (entrou em quase tantos filmes como os seus 67 anos de vida), com um quarto de século de experiência de realização, direcção de actores e produção de novelas e séries televisivas –, realizou e readaptou (com Álvaro Romão) a adaptação. Numa dupla homenagem, Breyner chamou ao protagonista um assassino profissional com uma úlcera, Pedro (às vezes, Peter) Shade. E ao enredo aplicou-lhe um tratamento de lifting geral. Tanto esticou, tanto cortou, tanto reajustou, tanto rejuvenesceu, tanto retocou, tanto lipoaspirou, que pouco sobreviveu do ambiente original macshadiano (que, aliás, pode voltar a ser lido numa reedição recente da Assírio e Alvim). A mais óbvia mudança foi o título: Requiem para Dom Quixote poderia parecer um pouco pomposo, com excesso de ressonâncias eruditas, para um filme tão honesta e assumidamente série B, que, já de si, se baseia num pastiche, só que bem escrito e cheio da ironia do autor de O Que Diz Molero.
Injectou-se uma dose de botox e de século XXI, porque «a violência agora já não é a mesma dos anos sessenta». Inocolou-se uma porção de actualidade bélica: uma guerra do Iraque (filmada em Portugal). Outra de globalização: o protagonista presta os seu serviços de sniper numa vila marroquina (também filmada em Portugal). E ainda o necessário quinhão de erotismo cinematográfico, com a ajuda das actrizes/chamarizes Cláudia Vieira e Sofia Aparício. Ficou o que realmente fascinava Nicolau Breyner, o plot de um criminoso rigorosamente escrupuloso no cumprimento dos seus contratos. Afinal, ele é um profissional. «E até no crime há uma ética», comenta o realizador
No livro, o assassino a soldo é muito mais monogâmico, pouco dado a aventuras românticas. É um tipo neurasténico, metido consigo, que ouve o Requiem, de Berlioz, e música sacra, e lê Ulisses, de James Joyce. Às vezes, dá-lhe para as introspecções e para os monólogos interiores, e talvez aqui se encontre a semente da fascinante e quase esquizofrénica oralidade que, dez anos depois, havia de germinar na literatura portuguesa em O Que Diz Molero...


A ética dos assassinos
Mas, por agora, Machado dedicava-se a escrever de um fôlego estes policiais à americana, passados entre Memphis, Palm Beach e Nova Iorque, em que o Big Boss era o «Sindicato», e os «favores» se pagavam com dólares.
No Requiem..., este profissional do crime, nas próprias palavras do autor, «bebe a vida e a morte pelo mesmo copo (de leite)». Atormentado pela úlcera, está em plena crise de procrastinação, nunca mais se resolve a encomendar o próximo ao criador. Gosta de conhecer a vida daqueles a quem a vai tirar. No Contrato, este Peter Shadey (Pedro Lima) também tem uma úlcera mas não parece nada interessado em saber se Rimbaud morreu precocemente ou se Beethoven afinal era ou não surdo. Nem tem esta tendência para a derivação introspectiva – dá-lhe é para os flashbacks. Do tempo em que participava na guerra do Iraque – filmada nuns pardieiros e numas ruínas industriais. Do tempo em que era criança e tocava o Para Elisa, ao piano, e assistia à morte trágica da mãe.
Toda a tridimensionalidade irónica da personagem se perde. Tudo tem a rasura da banalidade, tudo é o que parece, não há segundos sentidos, nada a esconder, navega-se à vista, corre-se poucos riscos. Até os do ridículo. As figuras podem ser um bocado holográficas, mas não há nada no filme de Nicolau Breyner que seja risível, ou falhado. Há personagens inúteis, cenas redundantes, mas os ritmos estão certos, os planos cumprem, os actores também, e a história vai-se contando competentemente. Sem piscadelas de olho nem presunções. Cumpre-se honestamente o contrato de um filme de género, em suma. Daqueles em que há malas de dinheiro, cenas de sexo e tiroteios. Era bom sinal que, em Portugal, se abrisse espaço para filmes médios, assim... Porque, regressando às palavras originais de Dinis Machado, a vida é como o Bolero, de Ravel, «as notas são sempre as mesmas, os andamentos é que mudam...».



‘REQUIEM’


Por coincidência, ambos os parceiros autorais do primeiro filme de Nicolau Breyner perderam a vida em 2008, quando o filme ainda era um projecto. Dinis Machado – escritor do livro em que se baseia Contrato: Requiem para Dom Quixote –, em Outubro, e Pedro Bandeira Freire – que fez uma primeira versão do guião –, em Abril.


 O que diz Nicolau


Como nasce este seu primeiro filme, aos 67 anos?
Fazer um filme é um sonho de há muito tempo. Desde a altura em que fazia só teatro, mas parecia-me um pouco utópico. Entretanto, fui-me dedicando ao teatro e à televisão, sem parar. Apresentei alguns projectos ao ICA – Instituto do Cinema e do Audiovisual – mas nunca foram subsidiados. Até que aconteceu que este projecto ganhou um subsídio. Tudo foi feito com total consentimento do Dinis Machado.


Porque escolheu um policial de Dinis Machado?
Adoro os livros de Dinis Machado, mesmo antes de saber que Dennis McShade era ele. Sempre disse que o meu primeiro filme haveria de ser um filme negro. Tenho uma paixão por estes ambientes decadentes, marginais e inquietantes, gosto daquela estética. Vejo tudo quanto é thriller americano, adoro o Tarantino... Nunca começaria por uma comédia, por exemplo. A comédia é um género muito mais difícil. O drama tem uma narrativa mais fácil...


O cinema-estado de espírito não faz o seu género...
Não. Gosto de cinema narrativo. Esse género de cinema-estado de espírito e quietude, não... Os filmes devem contar histórias. A Europa foi invadida pelo cinema que se diz de autor, que é elitista e pouco acessível...


Uma vez disse-me, numa entrevista, que era um espectador preguiçoso, ou seja, que gostava de ser entretido...
É isso, o cinema não se deve desligar dessa função de entretenimento


Como conseguiu filmar Marrocos e o Iraque sem sair de Portugal?
Tenho esta regra: tudo pode ser feito aqui. Portugal é um imenso estúdio. Tem paisagens diversificadas. Sabe, que isto de ter 25 anos a fazer televisão deu-me um grande sentido prático...


Fazer televisão é o mesmo do que fazer cinema?
Eu costumo dizer que só há duas maneiras de representar: bem ou mal. Quero fazer cinema que o mundo queira ver.


Mas qual é a vantagem de se ver um filme português à americana?
Não há vantagem nenhuma. O que eu quero é que as pessoas vejam e se divirtam, é tudo.

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