quinta-feira, 10 de janeiro de 2008

Dar com uma mão...

O Sonho de Cassandra, de Woody Allen







É crime, é castigo, é o fim do caminho, é cobiça e remorso. São as águas de Março. Ou se não são de Março bem podiam ser primaveris aquelas chuvas súbitas e excessivas que interrompem uma das melhores sequências de O Sonho de Cassandra, o último filme de Woody Allen (estreia-se na próxima quinta, dia 17). Dois irmãos (Ewan McGregor e Colin Farrel), um jogador crónico e um investidor apaixonado, tentam dar a volta ao tio milionário para que lhes empreste dinheiro. As voltas que a vida dá, e a câmara também (toda a sequência é filmada em espiral): o céu enubla-se, caem os primeiros pingos, lá em cima os deuses puxam cordelinhos, dão com uma divina mão para, logo a seguir, tirarem com a outra. Já abrigados sob uma árvore, agora é a vez de o tio tentar dar a volta aos sobrinhos, porque nada é de graça, muito menos um empréstimo sem juros bonificados. Com o terceiro e mais negro filme da trilogia londrina, depois de Match Point e Scoop, Woody Allen, com 72 anos, 40 filmes, três Oscars e inúmeros prémios, mostra como, numa frase sua, ele é daqueles que vê sempre o copo meio cheio mas de veneno. Em O Sonho de Cassandra não há lugar para o humor e ironia só mesmo a do destino. Não há Scarlett Johansson, nem Woody Allen, nem personagens neuróticas e seus pânicos existenciais.
Não há jazz (como sempre) nem música clássica (como em Match Point), antes as composições minimalistas de Philipp Glass. Não há artistas, nem escritores, nem intelectuais, nem psicanalistas. Nem as classes altas londrinas, mas os ambientes cockney do Sul da cidade: um dos irmãos é mecânico de automóveis, o outro ajuda no pequeno restaurante do pai.

Maré de azar
É impossível fugir às analogias com as atmosferas tensas e carregadas dos romances russos. Mais os Irmãos Karamazov ou O Jogador do que o sempre nomeado Crime e Castigo, de Dostoiésvki, o livro que faz parte daquela galeria de obras que toda a gente cita mas ninguém lê. É certo que O Sonho de Cassandra trata de um crime perfeito e de uma punição ditada pela consciência (a mais perpétua das penas), só que, ao contrário do remorso que atinge a personagem de Allen, Raskolnikov de Dostoiésvki deambulava pelas ruas de S. Petersburgo, atormentado não tanto pela culpa mas pelo pavor de ser descoberto, alienado pelo pânico e pela desconfiança.
Longe da perfeição e genialidade de Match Point (filme que reconciliou muitos fãs com o mais europeu dos realizadores americanos), O Sonho... recupera o tema da cobiça, do homicídio, do desengano, da paixão, componentes indeclináveis dos dramas clássicos. Logo no início do filme se nota o toque Alleniano (ou será melhor dizer Allenígeno?), na notável e concisa forma como, em poucas pinceladas, caracteriza as personagens, o ambiente, a relação fraternal, a dinâmica familiar, a admiração pelo tio, o desconsolo da mãe, o falhanço do pai. E nos são dados todos os sinais interiores de fraqueza versus os sinais exteriores de riqueza.
Dois irmãos embarcam numa missão perigosa e num veleiro baptizado com o nome que dá título ao filme, e mais uma vez surgem na tela os meandros da tragédia, os deuses a tecer destinos, enquanto as personagens, alheadas da sua sorte, se limitam a semear ventos. São borboletas nocturnas, atraídas pela luz que sempre lhes queimará as asas. Cassandra é a figura da mitologia grega a quem foi dado o dom da adivinhação, acompanhado pela maldição da não credibilidade. Ela adivinhava, profetizava, previa, mas ninguém a acreditava. E aqui os espectadores colocam-se na pele da profetiza. Nós bem prevemos que a maré em que os irmãos velejam não será de sorte. A certa altura, um diz ao outro «'A vida é porreira, pá'. Sabes quem diz isto? É Clyde de Bonnie and Clyde.» «E tu sabes como eles acabaram?» O naufrágio começa quando o aparentemente benigno tio lhes faz a contraproposta de um assassínio. Matarem ou não matarem, eis a questão que os assalta de início. Arrependerem-se ou não se arrependerem, eis a questão que os atormentará em seguida.
Unirem-se ou desunirem-se, eis a questão derradeira. Outro tema clássico da literatura, este dos irmãos aliados que se tornam inimigos mortais, como em O Tesouro, rescrito, entre nós, por Eça de Queirós.
Foi atravessada a fina linha entre o bem e o mal já não há retorno. Entraram no jogo, têm de jogar. E bem podem depois querer cortar com o passado o passado é que não quer cortar com eles.
Colin Ferrel (de Alexandre, o Grande, de Oliver Stone, ou de O Novo Mundo, de Terrence Malick) desempenha o mais consistente papel de sempre. O casting, todo ele very british, é perfeito, e pela segunda vez o realizador escolhe como director de fotografi a Vilmos Zsigmond (Melinda e Melinda). «Londres não só é uma cidade com uma meteorologia perfeita para o meu modo de filmar, também tem o clima perfeito para o meu temperamento», diz Allen, que não aproveitou a rodagem para enfrentar as suas proverbiais fobias. Todas as cenas a bordo foram filmadas através de um monitor. O realizador não teve de tirar os pés de terra firme. Não fossem os deuses sempre prontos a ensarilhar a vida dos cá de baixo tecê-las. Ainda para mais quando a embarcação leva o nome de profetiza descredibilizada.

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