quinta-feira, 6 de setembro de 2007

Danças com lobos

Os Fantasmas de Goya, de Milos Forman



Mais do que todo o filme, há muitas cenas que valem a pena em Os Fantasmas de Goya

«O homem é o lobo do homem», disse uma vez o filósofo Thomas Hobbes, hoje muito batido por ter sido nele que Bill Waterson se inspirou para dar nome ao tigre do Calvin. Os Fantasmas de Goya, de Milos Forman, está cheio destas alcateias humanas. Em pleno dia. Em pleno século das luzes. Não eram seres errantes, penados e arrastadores de correntes que assombravam a existência e as telas de Goya. Os demónios das duas célebres séries de gravuras, Os Caprichos e Os Desastres da Guerra, parecem bem terrestres e carnívoros. Por isso, só para começar pelo título, chamar-lhe fantasmas pode até parecer benigno. Ou então parecer que todo o terror (até se chama assim uma das épocas pós-Revolução Francesa) se dilui, como uma dessas assombrações translúcidas, ou uma aguarela demasiado líquida, que não era de todo o género das pinturas, densas e às vezes rudes, de Goya.

E aqui já entramos no próprio corpo do filme: se fosse quadro, Fantasmas de Goya não era pintura (muito menos de Goya), mais assim umas pinceladas quase desconexas que por mais perfeitas, não conseguem chegar-lhe ao pé (assim, sem esses).

O filme centra-se nos anos que abalaram o mundo ocidental. O sismo da revolução francesa, com epicentro em França – e suas réplicas na Espanha retrógrada, que já nos últimos estertores do antigo regime, ainda consegue reactivar a Inquisição. Há-de percorrer-se 16 anos das mais acrobáticas reviravoltas históricas. Os reis franceses são guilhotinados, os monarcas espanhóis põem-se em fuga. O plebescitado Napoleão estende o seu império e entrega a coroa ao seu irmão, altura em que a insatisfação do povo contra os franceses invasores introduz no dicionário uma palavra destinada a longo uso: guerrila. E depois de tudo isto, novo capricho da história: os ingleses comandados por Wellington restauram a monarquia repressiva e a própria inquisição. E do ‘Viva a liberdade!’ se passou para o ‘Viva a repressão!’ ou para o ‘Vivam as algemas!’. É neste período conturbado, em que perseguidores se tornam perseguidos, e presas se tornam lobos, que Goya produziu as suas obras mais gloriosas. E que Milos Forman – juntamente com o famoso argumentista Jean Claude-Carrière, com quem já trabalhara, na adaptação de Laclos em Valmont (1989) – centra a sua história. Fazendo conviver com a personagem verídica do pintor (e toda uma série de pessoas e factos reais), outras duas ficcionais: Inês, uma jovem musa do pintor, torturada pela inquisição, acusada de nem sabe bem do quê, e Lorenzo, o dominicano entusiasta do revigorar dos velhos e quase extintos métodos de «temor a Deus». É este o triângulo do filme: Goya, excelentemente encarnado pelo sueco Stvilaan, – embora na primeira parte do filme, antes de ser assolado pela surdez absoluta, pareça bem mais jovial do que atormentado; Inês num triplo papel desempenhado por Natalie Portman, incomparavelmente mais exigente do que a rainha Amidala de Star Wars, ou a rival de Júlia Robert, em Closers, de Mike Nicholas; e Lorenzo, interpretado por Javier Bardem, aquele que se julgava um dos valores seguros do filme e que se revelou, afinal, a maior decepção. Está bem que a dobragem, o cabelo comprido e os punhos de renda não o favorecem, mas a verdade é que, sejamos honestos, a representação não ajuda.

Todas as cenas foram rodadas em Espanha em cenários reais. Não há estúdios neste filme. Aliás, as entidades de defesa do património espanholas vigiaram de perto a equipa de rodagem, ela andou a pisar e a iluminar palácios e aposentos reais preservados há mais de 250 anos. Aqueles que os turistas apenas estão admitidos a olhar, nunca a profanar com fotografias de flash. Muitos dos figurinos e situações são decalcadas do universo pictórico de Goya, o génio que, dizem, fez a ligação entre o classicismo e o modernismo. E conciliou, na sua obra, os retratos mais oficiais (ele era o pintor da corte), com os sórdidos ambientes da sociedade espanhola. Monstros gerados durante o sono da sua razão, mas não só. Monstros gerados durante o sono da humanidade.

Goya era assim, Velázquez pintava anões, ele pintava monstros, fantasmas, prostitutas, mendigos, soldados animalizados, inquisidores, autos de fé, velhos medonhos, lobos... Diz-se que andava com um bloco pelas ruas mais corruptas de Madrid, com um bloco de notas, a fazer esboços, como um primeiro repórter fotográfico.

Muito interessante é ver como Milos Forman reconstitui a época. E o pudor não sensacionalista com que filma as cenas da tortura e do garrote. Ou aquela em que mostra a angústia de um pintor que não embelezava rainhas, ante a real avaliação do seu retrato. Ou a encenação de caça para um rei enfadado. E também o ar triunfante com que D. Carlos remata a sua parca exibição de violinista. O momento em que o irmão de Napoleão deprecia o famoso Jardim das Delícias de Bosch – daí que o quadro não tenha sido levado para Paris, como tantos outros. Ou um outro em que uns pais desesperados solicitam a interferência de um monarca cuja atitude mais esperada era lavar daí as suas mãos. Ou as instruções do inquisidor aos familiares, assim se chamavam os informadores civis do Santo Ofício, para que estivessem atentos aos sinais suspeitos de heresia: fazer sinal da cruz com três dedos e não com toda a mão, benzer-se da direita para a esquerda; sugerir que a matéria seja feita de minúsculos elementos chamados átomos... Ou a cena das conversas mundanas, de circunstância, num jantar que reúne a família da sequestrada e torturada e o impulsionador dessa tortura – conversas que versam sobre o modo como o vinho do Porto deve ser mantido nos porões dos navios mercantes que andam pelo mundo: o contínuo balanço melhora-o, torna-o mais aromático.

Ainda há uma sequência em que o realizador se detém na forma como Goya confeccionava as gravuras. Um dos raros momentos de respiração do filme. Que, na verdade, percorre a ritmo de galope todos os contorcionismos políticos e sociais da época. É talvez a razão que mais contribui para a fragilidade, não propriamente do argumento, mas das estratégias narrativas: a sensação de desconexão dos acontecimentos, um quadro, já se disse, concebido com retoques desgarrados, precipitados, cheios de arestas, pouco polidos, tão diferente das densas e goyescas pinceladas. A própria tensão vai-se diluindo, como tintas em aguarrás.

Do filme fica-nos o espectro daquilo que poderia ter sido. Da pós-revolução francesa, alguns sobressaltos mal conciliados. De personagens um lastro fantasmagórico, sem grande consistência, com pouca carne e pouco osso. E no entanto, é o novo filme de Milos Forman (dos muito oscarizados Voando Sobre um Ninho de Cucos e de Amadeus) e Jean-Claude Carrière: sempre a não perder.

Há espíritos que, mesmo assim, valem a pena. A letra pode ser lida no romance de ambos, entretanto publicado pela ASA. Aí se dá conta da impavidez da Espanha, enquanto em França a civilização evoluía. Ou se desnorteava, quando na fase do terror, se usava à lapela um alfinete de guilhotina, em vez da cruz de Cristo – afinal, como salienta Carrièrre, apenas se substituiu um instrumento de suplício por outro.

Sem comentários: