quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

…e livrai-nos do mal


O Laço Branco, de Michael Haneke






Michael Haneke fez o mais dreyeriano dos seus filmes, na Alemanha soturna, protestante e a preto-e-branco, dos anos 10, só que o Dreyer de Haneke, não é um Dreyer puro: todos morrem, ninguém ressuscita. O Laço Branco talvez seja o ponto em que Haneke se cruza não só com Dreyer, mas também com Lars Von Trier, porque há uma demência latente e perturbadora, comum de resto a toda a cinematografia do realizador alemão. Uma obra-prima, um clássico, um filme que se vê como quem lê um grande romance da história da literatura, com múltiplas leituras, ligações, patamares, personagens bi-dimensionais, tridimensionais (como
Avatar não tem), inteligência narrativa, teias complexas, portas fechadas e outras que nunca se fecham, mistério, suspense, densidade narrativa… Uma história que fica na História do cinema. E se não parecesse ridículo, insistiria que, até agora, é o melhor filme do ano. Senão vejamos…

1 O Realizador

Michael Haneke é um dos mais brilhantes e perturbadores realizadores europeus da actualidade. Nascido na Áustria notabilizou-se com Funny Games, um filme de terror, experimental na forma, e verdadeiramente pós-moderno, explorando brilhantemente a interactividade e os limites do cinema. Daí partiu para uma fase francesa, com destaque para A Pianista (com Catherine Deneuve) e Caché (com Juliette Binoche). Em 2007, fez a mais vil cedência mercantil ao refilmar, take por take, numa precisão germânica, Funny Games em inglês, com outros actores (não tão bons) – um acto desprovido de criatividade com interesse exclusivamente mercantil. Seria pois de esperar que o passo seguinte fosse uma entrada na indústria americana. É por isso, com agradável surpresa, que se recebe esta inversão da lógica. Um filme duro, a preto-e-branco e em alemão. E ironicamente, depois de três filmes francófonos, é com um filme germânico que Haneke ganha a Palma de ouro em Cannes. Merecidíssima.

2. Religião

A revolta da criança (de seis anos?), o filho do médico, quando, em conversa com a irmã, se apercebe da inevitabilidade e irreversibilidade da morte. é a mais profunda ligação a Dreyer. Um Dreyer sem retorno. Deixa-nos universalmente e desesperadamente órfãos. E até órfãos de Deus. Ao contrário do que acontece em A Palavra, em que a religião é libertadora, ou em Ondas de Paixão, em que Deus maliciosamente existe, aqui a religião é, pura e simplesmente, símbolo de opressão. A ferocidade cristã, os preceitos tolos, ajudam a construir o terror que se exerce, acima de tudo, sobre as crianças. O laço branco que o reverendo ata no braço do filho para lhe lembrar da importância da pureza, em vez de o prender aos Céus, para não cair em tentação, despoja-o da vida. Vive-se a religião do temor, num mundo de fachada, que nem os luteranos, com a sua leitura mais individualista e livre da Bíblia, se livraram.

3. Personagens

A teia de personagens é complexa e merecia um organigrama para a desvendar, o filme tem a riqueza de um clássico da literatura russa. Todas as personagens são esculpidas ao pormenor. Nada é absolutamente linear, o mal absoluto não existe e o que impera é o mal-social. Mesmo a mais vil das figuras tem traços humanos, que nos incomodam e preferimos não ver. Porque é muito mais fácil ver o filme a preto-e-branco. O conflito entre o mal e o bem, entre a culpa e o remorso, existe de forma deturpada. Nada é liso, todas as personagens, perfeitamente definidas e por isso perfeitas, encontram as suas contradições sem com isso perderem coerência.

4. Luta de classes

No meio desta avassaladora opressão social há uma ideia implícita ou paralela de luta de classes, expressa através do acto vândalo, vingativo, do filho do lavrador, que destrói o campo de couves, mas presente de forma menos evidente ao longo de todo o filme. Curiosa a diferença de comportamentos entre os barões reinantes e o resto das personagens. No final do filme parecem saídos de uma aristocracia à moda de Tolstói, com problemas contemporâneos e uma conversa moderna, sinal da mudança de era.

5. Policial

O filme tem tantos níveis de leitura e até um mais superficial. O Laço Branco também é um policial envolto em mistério. Quem cometeu aqueles horríveis crimes? Há uma intriga que acompanha o filme do princípio ao fim. Um enigma que poderá ser desvendado pelo espectador no final. Ou não. Aliás, o filme começa com um crime e talvez acabe com outro. Ao espectador é dado o espaço para integrar o jogo.

6. Entre Guerras

Ou acaba com o mais significativo crime de todos. O Arquiduque Francisco Fernando foi assassinado em Sarajevo e começou a primeira guerra mundial. A partir daí tudo se dissipa. A culpa morre solteira E o mundo nunca mais foi o mesmo. Muito menos a Alemanha. Perdeu a guerra, foi castigada em Versailles e instaurou-se o regime nazi. Mas o Mal já lá estava. No filme nós vemo-lo crescer.

1 comentário:

Rogério Floripa disse...

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