terça-feira, 7 de outubro de 2008

Ó males sem remédio!

Mal Nascida, de João Canijo


Ó poderoso Zeus, que o ultraje seja banido com o ultraje, em Trás-os-Montes! Ó fatais golpes sacrílegos, em Mal Nascida de João Canijo

Há quatro anos, quando estreou Noite Escura de João Canijo, falou-se em Portugal profundo para classificar aquele submundo sórdido da província e dos bares de alterne. Agora, com Mal Nascida, fica-se desprovido de termos. Se aquele era o Portugal profundo, esta transmontana furna de sombras, bois, granitos e alumínios é o quê? É o Portugal muito muito profundo, é o Portugal profundíssimo, é uma espécie de caverna de Platão, de gente virada para as paredes, pessoas que assistem àquilo que pensam ser a realidade através imagens projectadas na televisão. E há sempre uma televisão ligada no café da aldeia. Um ruído de fundo estridente, cheio de vozes festivas e aplausos. Estamos no reino do azulejo e do alumínio que vai minando um outro reino derrotado, o dos espigueiros e o da pedra radioactiva. E se Noite Escura se passava no microcosmos opressivo e concentracionário de um bar de alterne, Mal Nascida tem algum ar livre, embora o que mais se sinta é sufoco, nesta montanha feita vale sombrio, nesta aldeia feita buraco encurralado.

E não se convoca, a todo o propósito, o filme anterior de Canijo, por mero expediente comparativo. Com outros actores, outros ambientes e cenários, Mal Nascida é uma espécie de sequela lógica de Noite Escura. Pelo menos assim o determinaram os «deuses» gregos Eurípedes, Sófocles e Ésquilo, quase 500 anos antes de Cristo, que, como se estivessem num grande Olimpo das tragédias clássicas, continuam a comandar as inspirações e os destinos dos realizadores cá de baixo. O dono do bar de alterne (Fernando Luís) era um rei Agaménon do século XXI dC, aquele que sacrificou a filha Efigénia (Beatriz Batarda) para que os exércitos por ele comandados pudessem chegar a Tróia (na homérica operação de resgate de Helena, sua cunhada). Crendo morta a filha, a mulher Clitemnestra torna-se amante de Egisto, e ambos matam Agaménon, quando este regressa a casa, dez anos depois. O dono do estabelecimento – desta vez um café/taberna – continua a ser Fernando Luís (admirável actor), só que agora investido noutros trágicos desempenhos. Ele é Egisto e Márcia Breia é Clitemnestra. Electra e Orestes, os irmãos que juram vingar o assassinato do pai são Anabela Moreira (que já aparecia como secundária em Noite Escura e aqui é uma revelação) e Gonçalo Waddington. E o filme de Canijo começa justamente neste ponto, quando a situação já bateu no fundo, mas continua a ser possível escavar mais para baixo. E não podia haver forma mais tragicamente grega de começar, com a chegada de um forasteiro à aldeia. Ele observa esta estranha mulher enlutada, de cabelo mal-cortado à tesourada, que vela a campa do pai, debaixo de uma chuva copiosa. E esta terra não tem nada de Micenas, nem reis nem rainhas, nem palácios nem servas dos templos. Tem lama e bois, um café, um parvo de aldeia (Tiago Rodrigues) que toca acordeão e usa um daqueles gorros com duas abas, à Gato Fedorento. E Lúcia, a tal rapariga que dorme no curral, com os porcos.

Sem apelo, com agravo
Por estarem tão apegadas à construção interna da tragédia grega, certas partes do filme, alguns diálogos, ganham uma estranha inverosimilhança, sediada num hiper-realismo material. Uma irrealidade, insolitamente localizada na ruralidade (uma «irruralidade»?). Enquanto se alimenta o clima de tensão permanente, e se aguarda, sem ambiguidades, o desenlace trágico, os travellings pendulares de Canijo vão captando pedaços do Portugal real. Os alumínios do café, as mesas de mármore fingido, os calendários, os dísticos do WC, a garrafa de Sumol, o cachecol do Benfica, o anúncio dos «chupa chups», a TV sintonizada no Malato, todo um mundo de biblots religiosos e fluorescentes... Não existem deuses instigadores, como nas ancestrais tragédias, mas há a omnipresença de uma velhinha de buço e lenço negro, que volta e meia é enquadrada nos planos, sempre a fazer recordar a fatalidade funesta daqueles destinos. Não há coro, mas há o acordeão de parvo da aldeia, que sublinha, agiganta e esporeia a acção – sobretudo na parte final, quando se consuma a aliança entre os irmãos e se precipita a anunciada vingança. Sem apelo e com muito agravo.

Canijo dá ênfase (tal como na versão de Eurípedes) ao ódio exacerbado de Lúcia pela mãe (Electra é considerada psicanaliticamente como o espelho feminino de Édipo), e às cenas dedicadas ao reconhecimento (elemento também muito típico das tragédias), que é lento, gradual. Enquanto Lúcia come e o irmão a observa. Enquanto esta limpa, esfrega e manipula, com uma diligência sacrificial, um cadáver. A claustrofobia deste lugar de decomposição é-nos dada através desses travelings que, naquele andarilhar de vai e vem, sempre enquadram alguém a espreitar atrás de portas. Depois há Efigénia (ou melhor Fátima), a filha sacrificada que faz uma aparição no final do filme, tal como em Noite Escura, o menino (talvez Orestes) presencia as cenas. Noite Escura faz alguma sombra a este filme. Continua a ser o melhor filme de Canijo.

Sem comentários: