quarta-feira, 26 de março de 2008

Na paz do senhor deles

Luz Silenciosa, de Carlos Reygadas





Tentam passar pelo mundo como se sustivessem num arame, agarrados a um pau equidistante. Como se o ponto de equilíbrio estivesse ao humano alcance. Não está. Porque as consciências pesadas tendem sempre para um dos lados. E é quase de respiração suspensa que se assiste ao equilíbrio dos planos do mexicano Carlos Reygadas, no filme a Luz do Silêncio (Prémio do Júri em Cannes). Todo ele filmado com uma composição absolutamente simétrica, numa obsessão quase dantesca (no sentido em que Divina Comédia está toda ela organizada em torno do equilíbrio triangular do número 3) pela simetria. Como se uma grama a mais a pesar de um dos lados da composição colocasse em risco as força de gravidade cinematográfica.

O realizador filmou uma história de um triângulo amoroso – como 80% das histórias de amor da literatura e do cinema. Só que a filmou numa das mais imperturbáveis, estáveis, resignadas, monótonas e comedidas comunidades do mundo. Entre os menonitas, dissidentes anabaptistas, escorraçados, nessas sarafuscas teológicas, do centro da Europa para o Canadá e daí também para o México. Os menonitas, tal como os amish, pregam a sobriedade, a contenção e o pacifismo. Algumas comunidades recusam a tecnologia de um botão de abotoar. Não é o caso destes menonitas moderados, entre os quais Reygadas encontrou décors, actores não profissionais e uma noção de tempo perfeitamente única. Estes menonitas do norte do México, perto de Chihuahua, até aceitam o carro, a medicina e máquinas de ordenhar, mas renegam tudo quanto tenha teclas, telefones, televisões, i-pods, máquinas fotográficas (muitos dos protagonistas e figurantes nunca tinham sido fotografados quanto mais filmados)...

Vivem à margem dos mexicanos, em sociedades endogâmicas, falam um dialecto germânico, próximo do holandês medieval, e as mulheres usam um lencinho na cabeça. Vendem queijo nos mercados (no México são conhecidos como as pessoas do queijo), e eternizam-se assim, através dos séculos, neste equilíbrio controlado, nesta paz meditativa, entregues aos ciclos da Terra e às proscrições da fé. Resta saber se pode o amor romper esta feroz estabilidade ou não?

É disso que trata Luz Silenciosa. De uma pequena intrusão neste mundo cosmicamente aristotélico e terrenamente ordenado, que faz desarticular um dos braços do equilátero. Um menonita casado e com uma prole de filhos apaixona-se por outra mulher. E até aqui Reygadas prossegue a simetria: a amante e a mulher são ambas menonitas, têm idades e belezas idênticas. E o que vale mais, pergunta-se no filme, «a paz ou o amor»?

Todo um dilema amoroso em tom muito pouco dilemático, numa contenção bergamaniana de gestos e atitudes. Um pedaço de impassibilidade nórdica, de gélido comedimento transportada para as terras calientes e garridas dos mariachis. Um paradoxo geográfico que faz salientar ainda mais esta planura de costumes – a certa altura, num enxerto um bocado dissonante demais, vê-se numa televisão de um americano, Jacques Brel a interpretar Les bombons, onde também ele fala do seu enfadonho e plano país...

De resto, todo o filme flúi, nesta austeridade pesada – no sentido do ritmo (lento), nos jogos de luz, nessa composição simétrica que quase sufoca de aprisionamento. Pesa e é leve, ao mesmo tempo. É estranho. Estranho e tão natural como a ressurreição final, numa óbvia citação do clássico A Palavra, do dinamarquês Dreyer, um filme impregnado de religiosidade inflexível. Afinal quem ganha? A paz, o amor, a religião, o equilíbrio? Ou, talvez, vá tudo dar ao mesmo... Ámen.

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