quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Os outros que somos nós

Ágora, Alejandro Amenábar




Ágora, uma grandiosa e rara super-produção europeia, conta a história de Hipácia, famosa filósofa da antiguidade que atraiu a ira dos cristãos

Há uma mulher que vive numa casa velha e sombria num fim de mundo. É uma dessas casas cheias de ventos e eventos, vultos e assombrações. E ela vive lá, isolada, com os seus dois filhos foto-sensíveis e uns serventes funestos. Rodeia-se de rezas e precauções, porque, acima de tudo, ela teme o desconhecido, o insondado, o irracional, o estranho. Ou seja: os outros. A não ser se esse determinante demonstrativo (como se diz agora) se tornar pronome pessoal. Ou seja: nós próprios.

Entre o multi-premiado filme com que o espanhol Alejandro Amenábar conquistou Hollywood, em 2001 (Os Outros), e o Ágora (estreia-se hoje, dia 10), parece não haver algum vínculo. Nem qualquer pilar de sustentação que permita a engenharia civil de elevar pontes entre as duas obras. Nem o mais volátil e trémulo arame de funâmbulo. Os Outros era um thriller de terror e mistério, com Nicole Kidman no principal papel. Agora é um épico histórico clássico, ao bom estilo convencional e hollywoodesco, com Rachel Weisz no principal papel.

Mas os filmes anteriores dos realizadores sempre deixam rasto, há comunicações subterrâneas entre eles, estabelecem-se links que se abrem uns sobre os outros. Mas já lá vamos...

Ágora é a quinta longa-metragem de Amenábar, depois de Mar Adentro (Óscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2005), a história do homem (Javier Barden) que queria morrer mas espalhava vida em seu redor. Considerado a maior aposta de sempre do cinema espanhol (o orçamento, 100 por cento nacional, atingiu os 50 milhões de euros), o novo filme de Amenábar foi rodado com um elenco internacional em Malta, ao longo de 15 meses. É falado em inglês, porque como explica o realizador, citando Umberto Eco, «o inglês é o latim do século XXI».

Através de um reconstituição histórica rigorosíssima, o filme transporta-nos para o século V DC, até Alexandria, que ao tempo, era o centro do universo. Estávamos em vésperas da decadência do império romano, mas Alexandria ainda se iluminava com o farol (uma das maravilhas do mundo) e com a alta concentração de sabedoria, na célebre biblioteca que albergava 500 mil rolos de papiro e sete séculos de erudição.
No seu célebre programa Cosmos, dos anos 80, Carl Sagan dizia que se houvesse uma máquina de viajar no tempo era até aqui que escolheria voltar. Porque fora em Alexandria que começou, na realidade, a aventura intelectual do Homem que nos levaria ao Espaço.
A biblioteca era o cérebro e a glória da maior cidade do planeta, um templo do saber, o primeiro instituto de investigação do mundo, onde se estudava tudo: o inteiro cosmos. Por este posto de consciência humana passaram as mentes mais ilustres da antiguidade, cérebros superiores, entre eles, o de uma mulher: Hipácia. A primeira filósofa, astrónoma e matemática conhecida, era professora e guardiã da Biblioteca de Alexandria. Agora conta a história desta filósofa, apanha-a na época em que ela tinha tal prestígio que atraía centenas de discípulos, vindos de longe para a ouvir. E movia-se livremente num mundo de homens. O filme apanha-a em plena cruzada do conhecimento, quando ela tentava decifrar os mais misteriosos enigmas do universo, o movimento de translação da Terra, a órbita elíptica dos planetas...

O caos e o cosmos
Há então uma mulher que vive numa «casa» velha e ensolarada no centro do mundo. Ela vive com os seus discípulos, o seu pai filósofo, os seus escravos, e toda uma elite ilustre e instruída. Ela ainda não sabe, e anda tão absorta numa construção lógica e matemática do cosmos, que não aprendeu a temer... os outros. Os outros e o seu irracionalismo feroz. Hipácia foi brutalmente assassinada por uma turba de cristãos fanáticos e ignorantes. São arrepiantes os relatos do seu fim, esfolada viva com pedaços de conchas de ostra, trinchada e arrastada pela cidade. Amenábar concede-lhe um final muito mais amenizado e consentâneo com as grandes audiências.
Seja como for, o turning point do filme é o mesmo turning point da Humanidade. O dia em que a Biblioteca de Alexandria foi tomada de assalto pelos cristãos em fúria. Estes talibãs do cristianismo gritam «Aleluia!», proferem que «Deus é único» e quilómetros de papiro e sabedoria acumulada de séculos desfazem-se em cinzas. Costuma apontar-se a destruição da Biblioteca de Alexandria e a morte de Hipácia para marcar oficialmente o fim do Helenismo, e o princípio da Idade das Trevas. A Europa decaiu na mediocridade e só voltaria a ver luz, séculos depois, no Renascimento.
Amenábar diz que quis contar «uma história do passado sobre o que está a acontecer no presente». Só que, naquele tempo, os outros, os intolerantes religiosos, os fanáticos, os dogmáticos, os irracionais éramos nós. Tal como aquele thriller de terror que o realizador fez no princípio da década.
Toda esta dimensão de relativismo histórico é-nos dado através de uns plongés espaciais, do tipo Google Earth. Vemos do alto, as hordas de cristãos enraivecidas, vestidas de negro, como uma formigueiro desgovernado. E vemos também que Hipácia está mais perto do céu e seus abismos, do que aqueles que o evocam a toda a hora.
O filme é uma interpelação ao fanatismo de todos os tempos. Quando, como se diz no filme, se «perde o poder da crítica»: «Porque se criticas o mundo criticas a obra do senhor». Por isso, «bem-aventurados os humildes, porque deles será o reino dos céus».

A agulha e o camelo
Mas, e passando à questão cinematográfica, também sabemos que é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um filme entrar para a categoria das obras-primas. Algo em Agora não pegou - no sentido mais botânico do termo. Apesar da extrema prudência, exactidão e até do convencionalismo excessivamente linear do realizador, falta a este filme uma assinatura pessoal. E talvez humor. A britânica Rachel Weitz não consegue ser uma figura arrebatadora. E é hesitante o triângulo amoroso engendrado pelo guionista, entre Hipácia, Orestes (o prefeito romano recém-convertido ao cristianismo) e o escravo Davus (que acima da sua senhora e talvez de Deus ama a liberdade). Em contrapartida, estão muito bem conseguidas as cenas de apredejamentos sucessivos, as espadeiradas ensanguentadas, as armadilhas e escaramuças entre judeus e cristãos, com o seu «Deus carpinteiro». «O que estão a fazer?», perguntam-lhes. «Caixões para vocês».

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