Ágora, Alejandro Amenábar
Ágora, uma grandiosa e rara super-produção europeia, conta a história de Hipácia, famosa filósofa da antiguidade que atraiu a ira dos cristãos
Há uma mulher que vive numa casa velha e sombria num fim de mundo. É uma dessas casas cheias de ventos e eventos, vultos e assombrações. E ela vive lá, isolada, com os seus dois filhos foto-sensíveis e uns serventes funestos. Rodeia-se de rezas e precauções, porque, acima de tudo, ela teme o desconhecido, o insondado, o irracional, o estranho. Ou seja: os outros. A não ser se esse determinante demonstrativo (como se diz agora) se tornar pronome pessoal. Ou seja: nós próprios.
Entre o multi-premiado filme com que o espanhol Alejandro Amenábar conquistou Hollywood, em 2001 (Os Outros), e o Ágora (estreia-se hoje, dia 10), parece não haver algum vínculo. Nem qualquer pilar de sustentação que permita a engenharia civil de elevar pontes entre as duas obras. Nem o mais volátil e trémulo arame de funâmbulo. Os Outros era um thriller de terror e mistério, com Nicole Kidman no principal papel. Agora é um épico histórico clássico, ao bom estilo convencional e hollywoodesco, com Rachel Weisz no principal papel.
Mas os filmes anteriores dos realizadores sempre deixam rasto, há comunicações subterrâneas entre eles, estabelecem-se links que se abrem uns sobre os outros. Mas já lá vamos...
Ágora é a quinta longa-metragem de Amenábar, depois de Mar Adentro (Óscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2005), a história do homem (Javier Barden) que queria morrer mas espalhava vida em seu redor. Considerado a maior aposta de sempre do cinema espanhol (o orçamento, 100 por cento nacional, atingiu os 50 milhões de euros), o novo filme de Amenábar foi rodado com um elenco internacional em Malta, ao longo de 15 meses. É falado em inglês, porque como explica o realizador, citando Umberto Eco, «o inglês é o latim do século XXI».
A biblioteca era o cérebro e a glória da maior cidade do planeta, um templo do saber, o primeiro instituto de investigação do mundo, onde se estudava tudo: o inteiro cosmos. Por este posto de consciência humana passaram as mentes mais ilustres da antiguidade, cérebros superiores, entre eles, o de uma mulher: Hipácia. A primeira filósofa, astrónoma e matemática conhecida, era professora e guardiã da Biblioteca de Alexandria. Agora conta a história desta filósofa, apanha-a na época em que ela tinha tal prestígio que atraía centenas de discípulos, vindos de longe para a ouvir. E movia-se livremente num mundo de homens. O filme apanha-a em plena cruzada do conhecimento, quando ela tentava decifrar os mais misteriosos enigmas do universo, o movimento de translação da Terra, a órbita elíptica dos planetas...
O caos e o cosmos
Há então uma mulher que vive numa «casa» velha e ensolarada no centro do mundo. Ela vive com os seus discípulos, o seu pai filósofo, os seus escravos, e toda uma elite ilustre e instruída. Ela ainda não sabe, e anda tão absorta numa construção lógica e matemática do cosmos, que não aprendeu a temer... os outros. Os outros e o seu irracionalismo feroz. Hipácia foi brutalmente assassinada por uma turba de cristãos fanáticos e ignorantes. São arrepiantes os relatos do seu fim, esfolada viva com pedaços de conchas de ostra, trinchada e arrastada pela cidade. Amenábar concede-lhe um final muito mais amenizado e consentâneo com as grandes audiências.
A agulha e o camelo
Mas, e passando à questão cinematográfica, também sabemos que é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um filme entrar para a categoria das obras-primas. Algo em Agora não pegou - no sentido mais botânico do termo. Apesar da extrema prudência, exactidão e até do convencionalismo excessivamente linear do realizador, falta a este filme uma assinatura pessoal. E talvez humor. A britânica Rachel Weitz não consegue ser uma figura arrebatadora. E é hesitante o triângulo amoroso engendrado pelo guionista, entre Hipácia, Orestes (o prefeito romano recém-convertido ao cristianismo) e o escravo Davus (que acima da sua senhora e talvez de Deus ama a liberdade). Em contrapartida, estão muito bem conseguidas as cenas de apredejamentos sucessivos, as espadeiradas ensanguentadas, as armadilhas e escaramuças entre judeus e cristãos, com o seu «Deus carpinteiro». «O que estão a fazer?», perguntam-lhes. «Caixões para vocês».
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