quinta-feira, 31 de maio de 2007

Enteados de la patrie

Dias de Glória, de Rachid Bouchareb

Dias de Glória ilumina as zonas-sombra da memória colectiva europeia – ainda que com a luz trémula de uma lanterna.


Vencedores e vencidos são os eucaliptos dos livros de História. Crescem, crescem, desertificam tudo à volta, e por mais que se irrigue o arenoso terreno, muito dificilmente algum rebento de protagonismo consegue voltar a brotar por entre as páginas dos manuais. Esse mérito, o de fertilizante da memória histórica, já ninguém tira a Dias de Glória, de Rachid Bouchareb. É mais um filme sobre a luta dos aliados na Segunda Guerra Mundial. Só que não é mais um filme sobre a luta dos aliados na Segunda Guerra Mundial. Esta co-produção franco-argelina conta a história de um grupo de soldados das ex-colónias francesas que se alistam para lutar pela «pátria-mãe». Que, no caso deles, era mais uma pátria-madrasta. Os marroquinos, argelinos e tunisinos combatem debaixo de fogo cruzado: se escapam às bombas e à artilharia nazi, são alvejados pelos tiros do racismo e do paternalismo colonial. E este fogo amigo também derruba, também provoca estilhaços, também pode ser letal.

Eles estão no mesmo lado das barricadas mas são literalmente usados como carne para canhão. Atiraram-nos para a frente de batalha, nas missões difíceis, até os nazis revelarem os seus esconderijos. São uma espécie de «boi da piranha», que fica ali no rio a sangrar e a entreter as piranhas, enquanto a caravana passa.

E enquanto as balas vão e vêm, não lhes folgam as costas. Ao contrário dos camaradas de armas, usam sandálias na neve, não têm direito ao tomate na ração, nem a dias de licença. E são confiscadas as cartas de amor para namoradas francesas.

Este não é um filme de altos voos (se bem que de grande orçamento, para padrões europeus). Tem uma realização escorreita, cumpridora. Preenche todos os códigos cinematográficos dos filmes do género: a iniquidade da dimensão humana nas cenas de batalha, a difusa linha entre a cobardia e o heroísmo, uma dose de patriotismo, outra de separações amorosas... Também há a personagem ambivalente, o sargento ríspido que afinal até tem bom coração. E o soldado intelectualmente inepto, passivamente submisso, que também há-de revelar o seu momento de glória. Este cabo, raso de posto e de espírito, é Jamel Debbouze (o ajudante de mercearia de O Fabuloso Destino de Amélie), um comediante de origem argelina com grande sucesso em França e que funcionou neste filme como cabeça de cartaz.

Interessantes as cenas em que os oficias franceses observam e manobram, a uma prudente distância, as tropas argelinas. Do campo ao contra-campo, através dos binóculos, eles vêem os homens que vão caminhando para o massacre previsível. E que vão tombando, como peões do xadrez. É muito bem conseguida a sequência final, uma perseguição desesperada, no limite da sobrevivência, entre os escombros de uma aldeola perdida, na Alsácia.

Mais pelo insólito registem-se as cenas da desmobilização das plateias magrebinas, insensíveis aos encantos de um espectáculo de ballet clássico oferecido pelas hierarquias. Mas dificilmente se imaginaria um show mais desmobilizador de tropas – fossem elas vindas das colónias ou do mais sofisticado canto da Europa.

Dias de Glória foi o nomeado para o Óscar de Melhor Filme Estrangeiro, como representante da Argélia, e o colectivo de actores ganhou o Prémio de Melhor interpretação masculina, em Cannes, o ano passado. Além de vários prémios em Festivais.

Originalmente o filme chama-se Indigénes, e o título da tradução remete inevitavelmente (e assumidamente, pensa-se) para Tempo de Glória, de Edward Zwick (o de Diamante de Sangue ou O Último Samurai), com Denzel Washington e Morgan Freeman, que conta a história de um regimento de negros na guerra civil americana. Depois há um epílogo, de um velho combatente junto às campas de antigos combatentes, com demasiadas ressonâncias à Spielberg, ao Resgate do Soldado Ryan. Só falta mesmo o insuportável arvorar da bandeira ao vento.

E de volta ao princípio da crónica. Só para insistir: se há coisa que não se pode dizer de Dias de Glória é que não traz nada de novo. Porque traz. Regressa-se à segunda Guerra Mundial, palco de tantas e tantas revisitações cinematográficas, mas sob uma perspectiva diferente, ainda não explorada. Abre-se uma nova e esquecida janela sobre a participação de homens que defenderam a França sem nunca lá terem estado antes. Aspira-se um bocado do lixo europeu, varrido para debaixo do tapete histórico dos vencedores e vencidos. E ilumina-se estas zona-sombra da nossa memória colectiva – ainda que seja com a luz trémula de uma pequena lanterna.

O que já não é tão pouco quanto isto. Depois do impacto que o filme teve em França, foram restauradas as pensões aos veteranos norte-africanos, canceladas após a independência. Mais uma prova (como se delas ainda precisássemos...) de que a arte ajuda a mudar o mundo.

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