segunda-feira, 20 de julho de 2009

Na Praia da Memória

As praias de Agnés, de Agnés Varda






«Quando eu morrer voltarei para buscar os instantes que não vivi junto do mar», escreveu Sophia de Mello Breyner. Agnés Varda diz: «Se abrissem as pessoas encontrariam paisagens. Sem me abrissem a mim encontrariam praias». As Praias de Agnés, assim se chama o belíssimo auto-retrato da cineasta, que chega dia 23 às salas portuguesas (ou melhor, a uma das salas Cinema City Alvalade). Um filme feito como se fosse o último.
As autobiografias são, por defeito, obras egocêntricas. E tal é explicado logo nas primeiras palavras do filme, em que a autora se assume como protagonista: «Faço o papel de uma velhota, roliça e tagarela, que conta a sua vida». Mas, de forma extraordinária, parte logo para o outro, revelando-se a investida subtilmente altruísta: «São os outros que realmente me interessam e gosto de filmar, os outros que me intrigam, que me motivam, que me interpelam, que me desconcertam, que apaixonam». E que melhor forma de nos contarmos a nós próprios do que através daqueles que nos rodeiam?
É um jogo feito com os espelhos de que Agnés tanto gosta: através de si vêem-se outros, e através dos outros vê-se a si. E pelos outros se vê que a sua vida merece ser contada. Preferencialmente pela própria que, aos 80 anos, tem apurado o sentido da economia da narrativa, de forma a resumir o essencial dando o arbitrário. Porque um filme, por autobiográfico que seja, é sempre um filme. E As Praias de Agnés é um grande filme.
Pela relevância dada a alguns dos outros vê-se a grandeza de espírito da própria Agnés. Mais preocupada com as praias do que com as estrelas. Nesta vida, o encontro com Jim Morrison não ocupa mais do que um minuto, a Serge Gainsbourg dedica 20 segundos, enquanto Bill Violla e Rauscheberg não merecem mais do que uma citação. Petulância, nada disso. Apenas significa que, na economia sentimental da realizadora, estes tubarões valem pouco, comparando com as suas actrizes (Jane Birkin, Sandrine Bonnaire, entre outras), a sua equipa, a sua família ou o seu mais que querido Jacques Demy, com o qual viveu até à sua morte.
A realizadora belga procede a um brilhante exercício de cinema novo, experimental e refrescante, através de uma assumida consciência da existência do próprio filme. Varda diz que o cinema para si sempre foi um jogo. Aqui é também um jogo de memória. Não se trata da grande ilusão, porque nos (des)ilude constantemente, lembrando-nos que estamos num obra cinematográfica. Há sim uma constante brincadeira, um ludismo exacerbado e criativo, entre jogos de imagens e situações inesperadas. Autênticos truques de magia, que Varda nos proporciona de forma incrivelmente sensível, por vezes num estilo a que nos habituámos a ver Nanni Moretti, mas que é comum também em Godard, Fellini e outros realizadores.
Agnés Varda começou por ser fotógrafa, tornou-se realizadora quase sem querer e hoje, a senhora cinema deixou-se seduzir pelas mais refrescantes ondas das artes plásticas, com propostas cativantes. As Praias de Agnés também reflecte esses espelhos: é um filme de uma artista plástica contemporânea, feminista até às últimas consequências, lutadora incansável ,mas que agora desfila pelas ruas com um cartaz: «Dói-me tudo!» Mas as dores maiores não são as do corpo. São as da memória.

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