quinta-feira, 8 de fevereiro de 2007

Na paz do Senhor

O Grande Silêncio, de Philip Groning

Martírio ou contemplação? Por toda a Europa lotam-se salas para ver quase três horas de um filme da mais perfeita inacção


Um pestanejar. O restolhar de páginas desfolhadas. Passos no claustro. O retalhar disciplinado de uma tesoura no hábito de lã branca. Os sinos que dobram. A máquina zero no couro cabeludo. O roçar da faca nos vegetais. O toque da colher na marmita. Os pingos do degelo. O barulho único da pá a afundar-se na neve. O caminhar aveludado de um gato... Falar de sons num filme que pretende enfatizar o silêncio não chega a ser um paradoxo. Porque é o próprio silêncio que enfatiza os mínimos rumores, amplia-lhe os decibéis, ressalta-lhe o protagonismo. E O Grande Silêncio (estreia-se hoje) que o realizador alemão Philip Groning encontrou no mosteiro alpino dos cartuxos, a mais asceta e misteriosa das ordens católicas, foi um silêncio habitado. Colonizado pelos ruídos da natureza e dos rituais quotidianos, de há séculos, seguidos por estes monges de hábito branco e cabeça rapada. Eremitas em comunidade, solitários acompanhados, seres mudos de existência celular. Acantonados em celas espartanas, aí dormem, comem, estudam, rezam sete vezes por dia. Economizam palavras – quando precisam, deixam recados escritos uns aos outros. Reciclam materiais – quando um monge morre, reaproveitam-se o hábito, as linhas, os botões. Nunca dormem mais do que três horas seguidas – as orações nocturnas e colectivas intercalam-lhes os sonos. Sem luz artificial, as cenas ganham um granulado pontilhista de Seurat. Outras, são inundadas por focos oblíquos de sol, que atravessam claustros e janelas, à maneira dos mestres flamengos. Sem artifícios, nem voz off, nem banda sonora, nem entrevistas, o silêncio torna-se mais audível – mesmo o bater leve, levemente dos flocos que caiem.

«O mais difícil era controlar o próprio ruído que eu fazia. No silêncio ambiente, qualquer deslocação ou chiar de material parece desmedido», conta o realizador. Durante seis meses, Groning foi um deles. Carregou vinte quilos de material, filmou 120 horas, falhou algumas rezas nocturnas, confessa. «Se filmamos no mosteiro, enquanto vivemos no hotel, não dá para captar o ritmo dessas vidas». Um ritmo de cadência, quase circular, à velocidade das coisas imóveis. O ritmo da inspiração e da expiração, dos dias bons que se sucedem aos maus, dos passos quem vão e vêm nos trilhos pisados de sempre, do pêndulo de incenso, entre o perpétuo cá e lá... Passado e presente são coisas de humanos. «Deus vê na continuidade», diz o único que aceitou falar, com as sobrancelhas corridas, como persianas, sobre os olhos sem préstimo de velho e cego monge. O tempo como os círculos concêntricos na água que Groning filma obsessivamente. «Num dado momento, o filme encontrou a sua forma e tornou-se num espaço e não numa narração».

Mais do que um documentário sobre o silêncio, aquele é um ensaio, em câmara lenta, sobre o tempo. Que aqui se devia escrever tempooooooooooo. Elástico, extensível, às vezes esticado até aos limites da paciência, da monotonia e do desconforto. Groning endereçou o pedido para filmar no morteiro cartuxo dos Alpes franceses. Esperou, esperou... A autorização chegou... ao fim de 17 anos. E só isto bastaria para perceber a noção dilatada de urgência dos cartuxos. Ali não há caos, não há medo – nem da morte. Ali é outra dimensão. Só espaço, luz e silêncio. E já há metafísica suficiente para não ter de se entrar por espiritualidades, imortalidades e outras peregrinações interiores.
A imutabilidade é ilusão, a quietude redundância. O tempo passa na mesma. Quase que se escutam os minutos pingar. E isso nota-se nas estações que se sucedem, nas rugas e na flacidez dos monges velhos, no cabelo que cresce e é preciso rapar outra vez. E o mundo lá fora continua a existir. As frutas trazem o selo do supermercado, os aviões sobrevoam o mosteiro, muito lá de cima, e nem despejam cá para baixo o ronco da civilização. Os monges permanecem serenos na sua inutilidade. Eles estão na paz do Senhor. Melhor seria que um pouco dela fosse transferida também para outras (in)quietudes – bastante mais humanas.

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