quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

O meu mundo não é deste reino

Persepolis, de Marjane Satrapi

Persepolis, a história de uma rapariga à procura do seu lugar – no mundo e na história do cinema de animação



Não há efeitos digitais, nem 3D, nem cenários, nem um pixel. Apenas um lápis, alguns traços a bold e uma vida. Mas mais facilmente se encontra, na planura destas figuras a duas dimensões, volume, densidade e espessura do que nas personagens com actores de carne e osso, espalmadas pelo rolo compressor do lugar comum, das ninharias sentimentais e do psicologismo primário. É isto que de mais extraordinário existe em Persepolis (estreia-se hoje, quinta, 21) o filme da autora de BD franco-iraniana, Marjane Satrapi, 39 anos, (e do também cartoonista Vicent Paronnaud). Quantas dimensões cabem num só desenho animado? Se falarmos nos de Marjane muitas mais que três. Talvez por isso, a França, na corrida aos Óscares, se tenha empenhado em inserir Persépolis na categoria do Melhor Filme Estrangeiro, e não na da Melhor Animação, como agora concorre, lado a lado com o ultra-colorido Ratatui, um fast-food digitalizado da Pixar, e seus vertiginosos e ultra-sofisticados efeitos de animação digitalizada. Persépolis é de uma simplicidade desconcertante, um regresso às origens da animação, aos traços sedutoramente primários, mas com um guião muitíssimo cinematográfico. Ainda por cima, cheio de humor e auto-ironia - que é das armas mais letais no combate a todos os fundamentalismos do mundo. Levantando o véu, o filme narra a odisseia pessoal (relatada numa novela gráfica em quatro volumes, editados em França) da desenhadora, que nasceu no Irão, viveu na infância a ditadura tirânica do Xá, seguida da ainda mais tirânica ditadura religiosa dos islâmicos. Os bombardeamentos sistemáticos de Teerão foram cenário de fundo da sua adolescência, durante a sangrenta guerra entre o Irão/Iraque. E de uma cidade caótica e em escombros para um universo pacificamente limpinho do ocidente, num exílio temporário na Áustria. Sobreviveu aos raides aéreos, ao desaparecimento rotineiro de familiares e amigos, à claustrofobia do véu, à repressão, às restrições, à espionagem dos vizinhos, à vigilância dos «guardiães da moral», mas foi uma banal história de amor que me fez tombar», conta esta adolescente a preto e branco, já com a voz de Chiara Mastroianni (é Catherine Deneuve, sua mãe na vida real, quem dá a voz à personagem da mãe de Marjane).

E voltando às «dimensãos inúmeras» que o filme agrega, funde e (re)concilia. Ao plano autobiográfico e pessoal que se incorpora na esfera histórica de um país aplanado pelo terror («É o medo que faz perder a consciência», diz a avó); À tragédia que se combina com a comédia; À prosa que se mistura com a poesia, e o negro com o maravilhoso, e o castrador com o festivo; Ao intimismo que se une ao universalismo. E do particular se transita para o geral – essa imensa necessidade humana de pertencer a um lugar. Transita-se suavemente. Como transitam as pétalas de jasmim que a avó guardava no soutien, no genérico final do filme.

Punk is not «ded»
Toda história é narrada a preto e branco, como os sonhos, dizem. Ou como os flash-backs. Na verdade, a maior parte narrativa é uma recordação de tempos passados, evocados durante um único momento de cor. Talvez mesmo um dos mais melancólicos do filme - logo aquele que é a cores. Uma mulher – Marjane, na actualidade – está sentada a fumar num aeroporto de Paris. Não tem bilhete, está só ali para recordar. Nada que não tenha já acontecido a Marjane Satrapi na vida real. Era aqui, neste «não lugar» bege e impessoal, entre pessoas e coisas que passam, transitam, mas nunca ficam, que a autora de BD se veio uma vez refugiar, para reflectir, para se encontrar neste espaço de transição, entre estes dois mundos (e ambos são seus): o oriente e o ocidente. Não é por acaso que o único ponto de cor é este posto intermédio, um aeroporto, que já não é cá, mas também não é lá. E que o filme se chama Persepolis, a monumental capital do império persa da qual só restam ruínas e a memória histórica. Marjane vive em Paris, deixou a família no Irão. Ela é uma expatriada do seu mundo. Ou foi aquele seu mundo que se expatriou do resto do mundo?
Quando era pequena Marjane usava ténis Adidas, gostava de batatas fritas com Ketchup e admirava Bruce Lee. Escutava as histórias de torturas e prisões dos tios comunistas, tinha discussões infantis com Deus e com Karl Marx e nas ruas, com os outros miúdos, confundia Bulyng com justiça. Já enclausurada dentro de um véu, vê Godzilla com a avó, compra cassetes dos Iron Maden, usa um bulsão onde escreve à mão «Punk is not ded (sic), pins do Michael Jackson e outros «símbolos da decadência ocidental» no mercado negro. Na Áustria descobriu o niilismo acéfalo dos punks, os hippies inofensivos das fogueiras, pandeiretas e salsichas. De todas as metamorfoses por que passou, a mais radical foi a das hormonas da adolescência. Sentiu-se uma Alice dentro da casa, com o corpo gigante a sair por entre portas e janelas. Não resistiu aos primeiros abalos amorosos. Passa pela angústia da culpa de levar uma vida frívola enquanto em Teerão uma simples festa com danças e vinho pode ser sentença de morte. Teve uma depressão, regressou a Teerão e à reclusão do véu. Nas aulas de desenho anatómico, as modelos envergavam burca. Boticelli era censurado. Marjane parte de vez. Leva o seu irónico lápis na bagagem. Persepolis é a história de uma rapariga normal que se torna artista. Sobretudo é «preciso nunca perder a integridade», como lhe dizia a sua cáustica avó, a quem nunca mais tornou a ver. A tal avó das pétalas de jasmim guardadas no soutien.

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