sexta-feira, 8 de maio de 2009

Paisagem emocional

A Zona, de Sandro Aguilar







O cinema começou por ser um espectáculo de feira. As pessoas deixavam cair o queixo ao ver as imagens em movimento e acotovelavam-se para espreitar pelo óculo. É difícil de imaginar que alguém tenha apanhado maior susto diante de um ecrã do que aqueles pioneiros espectadores que assistiram ao comboio a chegar à estação, dos Irmãos Lumière, e gritaram de pavor julgando-se prestes a serem atropelados. Tal aproximou, na sua génese, o cinema do circo. É por isso que se ouve: «Eu vou ao cinema mas é para me divertir». E estranhamente nunca se ouve dizer o mesmo de um livro. Há essa expectativa enraizada, como se se tratasse obrigatoriamente de uma arte popular, ou pior popularucha, e não pudesse ambicionar algo diferente, a ser observado como um quadro de uma exposição. O mínimo que se exige de um filme é que conte uma história. Ao contrário de outros objectos artísticos que não têm nem devem contar história nenhuma.
Isto a propósito de A Zona, a primeira longa-metragem de Sandro Aguilar, que porventura até conta uma história, mas não com todas as linhas. Ou, como dizia Godard: «Todos os filmes têm um princípio meio e fim, mas não necessariamente por esta ordem». Este é um filme que claramente se candidata a objecto artístico. Aproxima-se de um imenso quadro audiovisual. E quem assistir deve embrenhar-se um pouco do espírito de quem se prepara para visitar uma exposição de um artista contemporâneo.
Parece inevitável ficar dividido entre duas hipóteses: ou se trata de obra de génio ou de uma fraude. Porque se não for considerado genial, ou que para lá caminha, tudo se esvazia na intolerável pretensão de fazer algo de novo. Fatalmente, em ambos os casos, será um criador incompreendido.
Quem conhece a longa obra de curtas-metragens de Sandro Aguilar sabe do seu imenso talento. A forma como criou uma semântica própria. Como faz filmes que se fixam por serem absolutamente originais. E aqui assevera-se da sua enorme coerência estética. Não fez da curta-metragem um mero território para a experimentação. Desde o primeiro momento (Estou Perto, 1999), apresenta uma incrível segurança e maturidade digna de um grande realizador. Não é por acaso que quase todos os seus filmes foram premiados em festivais, sobretudo no de Vila do Conde.
Ele próprio é a figura mais importante da chamada «geração curtas», tendo criado a produtora O Som e a Fúria, que integra realizadores tão relevantes quanto Miguel Gomes e João Nicolau. E representa a certeza de um futuro no cinema português numa geração que se segue a Pedro Costa.
Tal como em alguns filmes de David Lynch, em A Zona é possível passar um bom bocado a juntar peças, extrair significados, com o objectivo de completar um puzzle ou uma pedra de roseta que decifre a história que eventualmente conta. Isto porque Sandro evita a exposição ou, pelo menos, a exposição clássica e clara (à excepção de uma cena de um filme onde revela a relação entre o par). Interessa-lhe mais desenhar uma paisagem emocional, humana e interior. Por isso, é um filme feito de emoções e memórias. De portas que se abrem e se engolem. De passagens, traumas e evanescências. De poesia audiovisual, no melhor sentido do termo. Há uma inequívoca qualidade estética. Uma insana busca da beleza. Não há um plano frágil ou deixado ao acaso. Toda e qualquer imagem do filme revela uma sensibilidade artística superior. Todos os frames são emolduráveis. E há uma constante capacidade de surpreender, não através do susto, mas da própria beleza da imagem, do som e da montagem.
Durante grande parte do filme, mal se ouve uma palavra. A câmara divaga entre um hospital, uma casa, uma barraca perdida numa floresta e uma mota sem direcção. Em entrevista ao JL, aquando da ante-estreia do filme no IndieLisboa 2008, Sandro explicava: «Dou o mesmo tipo de tratamento a uma árvore e a um rosto. Tudo se mistura na matéria. A Zona é aquele território que vou tentando cercar». E é uma zona povoada de desespero, melancolia e morte. Essa imensa solidão convida a uma catarse, que resulta num inesperado volte-face: subitamente, entramos num filme mais próximo de João Nicolau. E de forma totalmente inesperada até nos rimos. Mas logo se compreende que esta mudança cénica não significa nenhum desvio. Naquela surreal festa de escritório, o que volta a interessar ao realizador é a decadência, a demência e a solidão. Rapidamente voltamos a um estado onírico e decrépito de sempre. Um puzzle emocional, cheio de monstros invisíveis que se fecham do lado de dentro.


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