quinta-feira, 30 de julho de 2009

Apocalipse sentimental

Duplo Amor, de James Gray







Aos actores pede-se o dom camaleónico de se adaptarem às personagens que interpretam. Um dia polícia no outro ladrão, um dia milionário no outro mendigo. Mas também há filmes desenhados para os actores, para eles brilharem, em que o processo é inverso: a personagem adapta-se ao actor. É o caso flagrante de The Wrestler e Mickey Rourke, em que este tem de fazer pouco mais do que de si próprio para se tornar admirável e quase ganhar um Óscar. Há ainda casos de talento inaudito, em que tendo como base uma personagem aparentemente vulgar, elevam a interpretação a um nível de excelência. Aqui entra Joaquin Phoenix em Duplo Amor, de James Gray. O filme é Joaquin Phoenix. Ele torna este melodrama aparentemente banal numa grande obra cinematográfica. Um actor um pouco mais fraco ou uma interpretação um pouco menos conseguida tornariam Duplo Amor uma obra de uma vulgaridade atroz. É que bem mais fácil é encarnar personagens extremas, o bêbedo, o maluco, o mauzão. Difícil é encontrar um equilíbrio bipolar de uma personagem ambivalente e, por vezes só através de um olhar, atribuir-lhe uma vasta dimensão interior. Ainda para mais, numa personagem subtilmente em trânsito, que faz um percurso interno ao longo do filme, sempre com grande moderação. Com isto não se quer tirar mérito a James Gray, porque é difícil desenhar uma história numa linha tão fina, conquistando o público através de um certo suspense emocional, que é algo extremamente difícil de fazer.
Duplo Amor situa-se algures entre Paul Thomas Anderson, John Cassevettes e Woody Allen. Há um ambiente judaico identificável com alguns filmes de Allen, numa claustrofobia parental, perante uma espécie de adolescência fora de tempo. Leonard é o filho adulto, de barba rija, com uma perturbação psicológica fruto de um desgosto amoroso: a noiva abandonou-o nas vésperas do casamento após ele se ter revelado infértil num teste. Tudo isto aparece fora do ecrã. O que nós vemos, logo de início, é uma cena forte, em que Leonard é resgatado do rio e logo se desculpa dizendo que caiu sem querer. Só que um miúdo, voz da verdade, o acusa: «Ele atirou-se, eu vi». O embaraço do para-suicida, que se desembaraça da multidão de curiosos, e se encalha em casa, onde a facto drástico é abordado com uma insuspeita naturalidade.
A partir daí assistimos à reconversão da personagem ao mundo, e o seu enclausuramento familiar, onde o ar se torna amiúde irrespirável. A casa é uma prisão. Mas a personagem surpreende-nos constantemente à medida que se revela para a vida, em traços que vão além de extremos ciclotímicos ou maníaco-depressivos. Descobrimo-lo entre mulheres, num estranho jogo de afectos. Assistimos à reedição da paixão primeira, com única perspectiva de fuga, assim como a construção de uma alternativa segura, convencional, encarada, simultaneamente, como um negócio de família. E o filme chega a um apocalipse sentimental, anunciado desde que Michelle Rausch, a personagem interpretada por Gwyneth Patrol, surge no ecrã. Mas a ambivalência e a subtileza permanecem até ao fim. Pode-se dizer que a história acaba não tão mal quanto isso, numa desesperante defesa da resignação, enquanto mal menor, afirmando que a maturidade sentimental é alcançada no momento em que conseguimos direccionar os nossos afectos. Ao contrário do que acontece nos filmes.

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