segunda-feira, 31 de agosto de 2009

O último filme de Tarantino de A a Z

Sacanas sem Lei, de Quentin Tarantino









Tarantino continua ser o grande ecoponto da indústria cinematográfica.
No seu último filme, ele exibe a sua mestria na arte da reciclagem. Pega em referências cinéfilas, reconstrói convenções de género, incorpora clichés (e as suas próprias private jokes e as suas imagens de marca), manipula emoções, e quase que faz jogo sujo com os espectadores. Tanto como aquele bando de psicopatas, mercenários e bastardos americanos, que se encontram na França ocupada com uma missão militar: não só matar cada nazi que se lhes depare pela frente – também tirar-lhe os escalpes... O que é um dos muitos achados deste filme.
Absolutamente bizarro, absolutamente tarantinesco, tirar escalpes a nazis, como os índios faziam aos caras-pálidas no faroeste. E nem aí atingimos o cúmulo do sadismo cru a que o realizador nos habituou. Isto é bastante mais soft-core do que cortar a orelha, como nos Cães Danados, ou decepar um crânio com um sabre japonês, como em Kill Bill... Aliás, a esperada cena de carnificina geral – esperada não só porque falamos de Tarantino mas também porque a Segunda Guerra a faz supor – até é das menos sanguinárias da carreira do realizador.
Tarantino é um manipulador. Quando se pensa que o filme vai num sentido, o argumento faz uma guinada noutro, quando se espera uma mortandade há um flop, quando se acredita num twist inesperado há o clímax anunciado. Certo é que Tarantino reciclou-se a si próprio, e sai-se com algo inteiramente novo... apesar de velho. É um realizador-frankenstein, retalha, cose e costura, pega em convenções mortas e dá-lhes nova vida.

Dá ideia de que, desta vez, quase que quis fazer algo mais sério – só que ele tem demasiado sentido de humor para fazer um filme carrancudo. Então fez este objecto, algures, num ponto indeterminado, entre a manipulação de um Spielberg e o humor sarcástico de um Hitchcock. Um filme com muito cinema lá dentro, cheio de referências cinéfilas explícitas, ao próprio filme italiano ao qual o título foi «roubado», a Leni Riefenstahl, a Howard Hawks, a Charlot, a King Kong, ao produtor David O. Selznick, e até temos direito a um momento de comédia italiana... Para além da grande apoteose final, em que o cinema destrói o 3º Reich e acaba com a guerra.
Pelo meio temos personagens extraordinárias, um casting perfeito, conversas banais, mesmo à Tarantino, genialmente prolongadas, que acontecem no meio da situações mais tensas. Sobre a qualidade da produção leiteira em França, quando uma família de judeus escondida está prestes a ser denunciada... Sobre a definição de duelo mexicano quando imensos corpos jazem no chão depois de um tiroteio claustrofóbico... Sobre as regras de um jogo social, quando os espiões aliados se sentem à beira de ser desmascarados por um tipo da Gestapo... E ainda há muitos recados à comunidade cinéfila europeia, menções irónicas à incultura generalizada dos americamos, um wishful thinking colectivo, vários escalpes e três copos de leite.
Ah, e ainda um extraordinário, mas mesmo absolutamente extraordinário, além de quadruplamente poliglota, actor: Christoph Waltz. Decorem-lhe o nome, pois vai seguramente voltar a aparecer-vos em Fevereiro, nos Óscares.

A
APACHE
É a alcunha por que é conhecido o tenente Aldo Raine (Brad Pitt). Ele chefia a missão dos «bastardos», tem sangue índio, muito pouco jeito para falar italiano e pede aos seus homens que lhe tragam, cada um, cem escalpes nazis.

B
BOCHEBURGUER

Um insulto inventado pelo americaníssimo tenente Aldo Raine, enquanto é capturado pelas SS nazi.

C
CAPÍTULOS
Desta vez, Tarantino, também divide o guião em capítulos. Só que agora não inverte a sua ordem cronológica, como já fez em Pulp Fiction ou em Kill Bill. Agora eles são mais ordeiros, e quase que se mostram desnecessários para o curso da narrativa. A graça é ser quase uma impressão digital de Tarantino, uma marca de autor que os espectadores gostam de reconhecer, embora não faça lá falta nenhuma. A maneira que Tarantino arranjou de iludir esta linearidade, foi encher o filme de inserts, sejam flashbacks, sejam fragmentos a apresentar personagens como num slasher-movie, de segunda categoria, um mini-documentários explicativos sobre quanto o nitrato das películas pode ser inflamável, ou uma fugaz cena de sexo de um mau gosto atroz...
E ainda há um narrador em voz off que aparece como desaparece: quase sem darmos conta.

D
DEDOS

Os pés de mulher. Mais uma vez o fetichismo de Tarantino pelos pés comparece no filme, agora, numa versão mais Cinderella. Também há uma cena em que põe o dedo na ferida – literalmente. E outra muito significativa que envolve a linguagem gestual alemão e a forma como eles representam o número três com os dedos.

E
ESTEREÓTIPOS

Os franceses respeitam os realizadores, os americanos são péssimos a falar línguas e os alemães não gostam de alterar planos em cima do acontecimento e nos seus tempos livres fazem montanhismo...

F
FUMO

É impressionante o que se fuma neste filme. Quase todas as personagens puxam de um cigarro ou de isqueiro. Até um dos membros dos basterds quando está a ser chicoteado, num poste como um escravo, segura um cigarro na mão. No final, na cena do cinema, a fita projecta-se na cortina de fumo, quando a tela já ardeu. E depois há uma espécie de duelo de cachimbos. Um modesto e campónio cachimbo francês contra um imponente cachimbo tirolês.

G
GESSO

Uma das brincadeiras sádicas de Tarantino. A actriz Bridget apanha com um balázio na perna, mas arranja-se-lhe um gesso com salto alto para desfilar na passadeira vermelha da premiére.

H
HITLER
É talvez o ponto fraco do filme. Este Fuhrer não impressiona por aí além. Nem surpreende, já tínhamos visto bem melhor em O Grande Ditador, de Charlot. Ele e os seus acessos de fúrias no magnífico John Clesse. Com uma excepção, aquela em que o Hitler de Tarantino sai do seu camarote para pedir, casualmente, uma pastilha aos soldados.

I
INTERIORES

É o primeiro filme de época de Tarantino, que resolve tudo astuciosamente, colocando as suas cenas todas em interiores. Da França ocupada apenas se vê uma paisagem rural, supostamente em Nancy, uma cabana e um prado (que bem podiam figurar num western americano), um bosque incaracterístico (na zona da linha de frente dos aliados) e alguns becos e ruas esquinadas a simular Paris

J
JOGO
Uma das mais engenhosas sequências (e uma das melhores, também, sem contar com a primeira) envolve um jogo de sociedade que consiste em adivinhar as personagens em cartas coladas com cuspo na testa. Tarantino consome tempos infindos neste jogo, enquanto o ambiente está tão tenso como a corda do primeiro violino da orquestra.

K
KINO

É cinema em alemão. E foi o nome dado a esta fantasiosa operação, comandada por Churchill de vencer a guerra durante uma primiére em França
L
LENTA

A câmara lenta em Tarantino usada como respiração musical. No andar de um oficial condenado à morte. E numa cena quase romântica, e muito sádica, dentro de um gabinete de projeccionista.

M
CONVERSA MOLE

É o que Tarantino faz melhor, os magníficos diálogos. São os diálogos, entremeados de conversas banais, que conduzem as cenas. Só ele consegue transformar cenas em que só se conversa em cenas de acção, cheias de adrenalina, e momentos de tensão e recuperação…
N
NICKNAME
Há várias alcunhas neste filme. A primeira a surgir é a do Caçador de Judeus. A outra é a de Carrasco (o real para Heydrisch). Do lado, dos aliados há o Urso Judeu, o Apache, o Pequenito

O
ORTOGRAFIA

Inglourious Basterds, assim mesmo com «e» em vez de «a», é o toque slasher movie deste filme

P
PROVÉRBIOS
Dois: ambos envolvem… pés. « Se o sapato serve, há que usá-lo».

Q
QUARENTA

Um dos grandes segredos de Tarantino é o casting. Os actores calçam as personagens como uma luva. As únicas três actrizes femininas do filme (a quarta é uma mulher soldado nazi, do género camionista) , Julie Dreyfus, Mélanie Laurent e Diane Kruger (esta última fabulosa actriz) têm um look anos 40. Não basta sê-lo, é preciso parecê-lo, elas estão vestidas à anos 40, mas as suas caras também têm um ar retro. Talvez, seja por isso que o papel de Angelina Jolie, no último filme de Eastwood não tenha «encaixado»: a sua fisionomia definitivamente não cabe numa personagem de época.

R
RATAZANAS
Mais um exemplo de como as conversas banais e genialmente absurdas se intrometem no discurso. Conversas mornas, quando a situação está escaldante. É o caso do primeiro capítulo do filme, todo ele composto de uma só e longa conversa. É um início de filme absolutamente antológico. Perfeito. A retórica do genial coronel Landa, primeiro em francês, depois em inglês, a interrogar o firme (e afinal não tão firme) agricultor francês. A certa altura a conversa dá uma guinada para estes roedores e para as ideias estereotipadas que as pessoas têm deles: «mordem e transmitem doenças». Mas afinal, desde a peste negra, não há memória de que sejam assim tão malignos, mas os humanos tendem a considerar os ratos mais repulsivos do que os esquilos, tão roedores uns como os outros.

S
SÁDICO

É uma das especialidades do realizador. Ele não é só sádico com as suas ersonagens. Também o é com o espectador. Basta pensar-se que a apoteótica cena final, em que todo o 3º Reich se esvai em cinzas (com Hitler, Goebbels, Goering e Bormann –assinalado por umas setinhas), se passa numa sala de cinema. Os espectadores de uma sala de cinema vêem na tela outra sala de cinema, com as pessoas trancadas lá dentro, e o público todo a arder, a explodir, e ser atingido por metralhadoras dispostas no balcão…

T
TRANSGRESSOR

A outra característica mais óbvia deste realizador-frankenstein, que subverte as convenções, mistura os géneros, ignora as expectativas, usa um narrador para o deixar perder logo a seguir, faz inserts, mata as personagens num ápice…

U
UNTUOSO

Muito mais interessante do que Hitler, é o personagem, luzidio e escorregadio, que Tarantino fez de Goebles, o ministro da propaganda do Fuhrer

V
VINGANÇA

É disto que este filme trata. Tal como Kill Bill, tal como À Prova de Morte. Também aqui haverá a vingança da rapariga vilipendiada, a quem mataram a família toda, posta em acção na segunda parte do filme. Mas acima de tudo, fala-se de uma vingança retroactiva (todas o são, mas esta ainda mais), da humanidade inteira, contra as atrocidades desses seres medonhos (dignos de filme) que tornaram possível o holocausto.

W
WISHFUL THINKING

Aquilo que toda a gente desejaria que tivesse acontecido. Que os nazis tivessem uma cicatriz de suástica gravada na testa, pela faca do tenente Aldo Raine. Para não lhes ser tão fácil escapulirem-se na América do Sul, quando despiram as fardas.

X
XENOFOBIA

Num contexto de óbvia xenofobia, o realizador introduz um negro, como projeccionista do cinema. O facto não vai ter grande relevância para a história, é apenas mais uma manobra de distração do manipulador Tarantino.

Y
YORK
Outra das referências cinéfilas nos diálogos do filme. Desta vez ao filme de Howard Hawks (1941), em que o sargento York (Gary Cooper) se fartou de dizimar alemães, com tiros certeiros, durante a primeira guerra mundial.

Z
ZOLLER

O franco-atirador que se tornou vedeta, entre o exército alemão, por ter matado mais de 300 aliados, do cimo do seu «ninho» é interpretado por Daniel Bruhl, o jovem actor alemão de Good-bye Lenine e Edukadores.

1 comentário:

Veruska disse...

Curiosamente, eu adorei o Hitler. Achei-o mesmo fantástico.