terça-feira, 30 de dezembro de 2008

Voyeurismo míope

Quatro Noites com Anna, de Jerzy Skolimowski




Depois de 17 anos de silêncio, Skolimowski regressa com um filme silencioso. E que joga com o espectador uma espécie de jogo escorregadio, quase viscoso: A personagem Léon que no início embrulha escrupulosamente um machado e vigia uma mulher nas ruas lamacentas pode ser um psicopata assassino, mas também pode ser um débil mental inofensivo; tudo se passa numa vila do Norte da Polónia, cheia de humidades, lamas, nevoeiros e um rio, mas para além da água também há o fogo do forno crematório que incenera pedaços amputados dos corpos que vêm das salas de operações do hospital, onde este homem trabalha; assiste-se a um lirismo impossível que germina na desolação meio escalavrada de um kolkhoze abandonada; e uma empatia pela personagem que oscila, sem nunca se chegar a instalar.

É a história de um homem meio autista, que vive nos esconsos pestilentos desse forno crematório, e com uma avó acamada. É um ser socialmente excluído, mas quer contacto humano, apaixona-se por uma mulher. E aproxima-se, subtilmente, poeticamente. Como um voyeurismo míope, ele tem o olhar ausente e o corpo presente. Primeiro espreita-a ao longe, depois espia-a pela janela, depois entra-lhe em casa para a observar mais de perto, de muito perto, enquanto ela dorme. Nunca lhe toca, mas sente-lhe o respirar adormecido, despeja-lhe os pratos da véspera, arranja-lhe o relógio, cose-lhe um botão, enfia-lhe um anel no dedo comprado com a indemnização do despedimento, pinta-lhe as unhas dos pés. É o mais leve e ingénuo toque em Anna nestas quatro noites: o deslizar do pincel nas unhas dos pés.

De uma beleza improvável e de uma poesia naturalista, quase a roçar a crueldade do sarcasmo... De uma bizarria comovente...Diz-se que todos os filmes tem a sua key-image. Aquela para a qual todo a narrativa parece confluir. A deste é aquela cena de uma vaca morta, a boiar, arrastada pela corrente de um rio.


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