quinta-feira, 23 de abril de 2009

Ainda se morre de amor

Um Amor de Perdição, de Mário Barroso










Descobriu-se a cura para a sífilis, gonorreia, escarlatina, tuberculose, lepra, tétano, difteria e tosse convulsa. Mas há um mal muito antigo para o qual os cientistas, ao longo dos anos, nunca acharam remédio ou antídoto. Hoje, no século XXI, ainda há quem morra de amor. E saber disso é meio passo para entender este novo Amor de Perdição, de Mário Barroso, a partir de Camilo Castelo Branco. Já Jorge Cramez, no seu Capacete Dourado, inspirara-se numa história real, de um casal adolescente que se suicidou, mas não teve a coragem de carregar o mais pesado fardo do amor até às últimas consequências, deixando o filme descosido.
A história de Camilo é forte. Amores de perdição haverá sempre. E, em plena empreitada da Geração de 70, onde as perdições dos amores soavam particularmente ridículas, o prolixo escritor, ao mesmo tempo que dizia «eu não cessarei de dizer mal desta novela», lançava a esperança: «Se, por virtude da metempsicose, eu reaparecer na sociedade do século XXI, talvez me regozije de ver outra vez as lágrimas em moda nos braços da retórica».
O que Camilo não poderia adivinhar, em 1879 (data do prefácio da 5.ª edição), é que esses tais de Irmãos Lumière, na viragem do século, haveriam de inventar uma arte chamada cinema. E que, ao longo de mais de 100 anos, a sua obra haveria de ser recontada em imagens por seis vezes, em abordagens distintas. A adaptação mais famosa é, sem dúvida, a de Manoel de Oliveira, que filmou o texto, tintim por tintim, ao longo de seis episódios (há uma versão mais curta feita para o cinema). Apesar da cumplicidade entre Barroso e Oliveira, esta nova adaptação nada tem a ver com essa. E procurar ligações entre elas é puro equívoco. O que Barroso faz é contar em imagens uma história dos nossos dias. Ou que, pelo menos, somos tentados a crer que poderia acontecer hoje.
A dificuldade não é o radicalismo do amor de Simão, nem o seu fundo platónico, o enamoramento pela própria ideia do amor, tão típica da adolescência, mas sim os pormenores de época: os retratos de costumes, as famílias rivais, as filhas enclausuradas em conventos, os ferradores assassinos, as cartas de amor, os rebeldes sem rei nem roque, homens acima da lei. Mário Barroso encontrou soluções engenhosas e lógicas. O ferrador transforma-se em mecânico e o convento em hospício. Os capangas em seguranças e as cartas perfumadas em chamadas de telemóvel. Nesse particular, Mário Barroso tem um golpe particularmente bem conseguido: uma conversa por telemóvel sem telemóveis, dando uma inesperada fluidez a uma cena aparentemente difícil.
O amor entre Simão e Teresa é puramente platónico. Há uma barreira intransponível, de carácter quase masoquista. É um amor que se autoflagela. Teresa (Ana Moreira) quase não se vê. As suas aparições são subtis e oníricas, como se a o amor fosse algo demasiado precioso para se tornar real e visível. Simão apaixona-se por uma silhueta. O contacto físico é inexistente. Mário Barroso compensa a ausência de sensualidade na relação principal pela paixão silenciosa entre Mariana e Simão (tal como Camilo). Mas vai mais longe, e insinua duas paixões incestuosas e um pouco perturbantes: entre a mãe e o irmão de Simão, e entre Simão e a irmã mais nova. Os improváveis casais são desenhados com uma sensualidade que, não chegando a ser explícita, é evidente.
Neste filme, perfeitamente conseguido, tal como o anterior O Milagre Segundo Salomé, Mário Barroso teve ainda o mérito de encontrar novos actores para o cinema português. Todo o destaque vai para Tomás Alves, com apenas 18 anos, essencial para que este filme seja grande. Com uma inegável presença, domina todas as cenas, mesmo quando contracena com actores bem mais experientes, como Virgílio Castelo ou Paulo Pires. É ele que concede toda a densidade à personagem de Simão e a transporta para os nossos dias de forma sóbria, segura e sofrida. Fazendo-nos acreditar que a morte é um mal menor.

1 comentário:

Anónimo disse...

Fantástico Tomás Alves!
O título do artigo no Jornal de Letras diz tudo: "Fixem este nome"!