terça-feira, 17 de março de 2009

A pedido de um leitor…



O Leitor, de Stephen Daldry






Cruzam-se várias camadas de leitura neste filme de Stephen Daldry, o dramaturgo realizador de quem antes já havíamos visto As Horas e Billy Elliot. E é também isso que faz engrossar esta obra, aparentemente simples, aparentemente lisa. Porque afinal tem uma estrutura de mil-folhas, camada sobre camada, sem no entanto perder a leveza da massa folhada, e os interstícios de ar que existem no meio de cada fina película. Se não houvesse Slumdog este ano, era o filme que eu gostaria que tivesse ganhado o Óscar como disse na revista no artigo das previsões da academia. Apesar de não ter a grandeza Hollywoodesca, nem ser esteticamente fundador nem nada disso, O Leitor tem uma dimensão humana imensa.


Para já é uma adaptação fidelíssima, ao nível dos pormenores, dos diálogos, dos ambientes do livro do alemão Bernhard Schlink, considerado o mais aclamado romance alemão desde O Perfume. O romance foi muito premiado e traduzido em 39 línguas. Depois tem essa insustentável leveza, na contenção, no despojamento, apesar de toda a atribulada produção a que foi condenado. Não se nota, o resultado é mesmo muito bom.


A história é a de um ajuste de contas. Dos alemães para com a sua História recente. Dos europeus para com aquela que é também a sua História. É um filme que solta fantasmas. Abre uma janela, deixa entrar o ar e faz redemoinhar o pó que a sociedade alemã acumulou sobre os horrores do nazismo. O ajuste de contas, também como o próprio filme, parece leve e subtil mas é brutal. Brutal a forma como as gerações mais jovens podem confrontar as mais velhas que foram guardas ou esbirros ou que conviveram com eles sem os repudiar frontalmente.


É um filme que fala de marcas, portanto. De cicatrizes. Tanto aquelas que permanecerão para sempre na História, como aquelas que ficam para sempre gravadas na nossa banal existência individual. A Alemanha confronta-se com a sua própria memória. O protagonista também se confronta, paralelamente, com a sua própria memória. Sobretudo a memória de um amor adolescente, quando tudo parece urgente e principal.


E há uma terceira cicatriz de que se fala – que marca e não passa, ao contrário dos amores da adolescência. Que são as marcas dos livros que lemos. E no filme fala-se de Homero e de Tchecov… que são tintas permanentes – como tatuagens.


Há um rapaz que cresce, mas tem de passar por uma espécie de rito de passagem. Há uma país que também passou por um ritual terrífico e que nunca serenará com isso. Correctamente contada, sem grandes efeitos cinematográficos, a sensibilidade da história é captada pela abordagem de Daldry. De forma delicada e melancólica, vemos alguém que cresce drasticamente. E alguém que envelhece, ainda mais drasticamente. E vemos também esta coisa espantosa que é alguém que se encaixa na categoria dos monstros, que é de uma insensibilidade imensa para o sofrimento humano, mas depois é de uma sensibilidade também imensa para a beleza da literatura. (salvo erro é a única altura em que a protagonista -a fantástica Winslet - se comove é quando escuta uma trecho de uma livro. E isto é algo para o qual nós nunca estaremos preparados: como é que pessoas que conseguiram cometer as maiores atrocidades podem ser sensíveis à arte e àquilo que de mais belo a vida pode trazer. E isso dói, incomoda, corrói…


É, além de tudo o mais, um filme muito europeu (apesar de não o ser), nos seus ritmos, nas suas respirações, e que tem uma coerência estética muito nua e crua. Muita limpeza, muita nudez, muito cheiro a desinfectante. O que se por um lado, transmite uma atmosfera de pureza e erotismo do primeiro amor, por outro remete-nos para a estética asséptica da nudez das câmaras de gás. Muito desconcertante, muito difícil de digerir. Muito muito emocional.

1 comentário:

a glória do vulgar disse...

muito obrigada.
(neste caso não estou completamente de acordo consigo, ao contrário do que tantas vezes me costuma acontece, mas apreciei, como sempre, o fantástico 'food for thought' aqui servido.