sexta-feira, 24 de julho de 2009

A praia sobre a calçada

As Praias de Agnès, de Agnès Varda




É um bom lugar para fazer desaguar memórias. Vão e vêm, a cada vaga mais um sedimento, que se vai depositando, emergindo, ou ocultando debaixo de outras. Agora a realizadora Agnès Varda é respigadoras de memórias e de filmes. E de tudo aquilo que se foi acumulando na beira-mar dos seus 81 anos.


As vagas são sempre novas. As areias movediças. Os ventos desapiedados. E as praias fazem o contrário do slogan soixante-huitard: «Sous les pavés, la plage!». No documentário autobiográfico As Praias de Agnès (estreia-se hoje, dia 23), as praias não se encontram por debaixo do pavimento: a realizadora coloca-as por cima dele. Não é preciso arremessar bocados de calçada contra as forças da velha ordem para descobrir a redenção de um areal, com água ao fundo. Na verdade, também não é possível arrancar os paralelepípedos do Quartier Latin, porque todos os boulevards foram há muito alcatroados. E, no entanto, as praias continuam lá. Esses lugares sem idade, onde o céu e o mar se tocam, sempre iguais, sempre mutantes, sempre recomeçados. É uma espécie de on the road poético, este novo filme de Agnès Varda. Em que ela vai descobrindo as várias praias da sua vida, a cada passo dos caminhos que tomou. Desde aquele que tomou até à China, até àqueles que percorreu, centímetro após centímetros, para meter o carros na estreita garagem, após 13 manobras.


Um documentário brilhantemente solar, em tempo de ocaso. «Estou convencida de que se abrissem as pessoas se descobririam paisagens dentro delas. Dentro de mim estão praias.» Praias e as memórias que esvoaçam à sua volta, «como moscas desorientadas». Depois de ter prenunciado um novo olhar, um novo cinema, uma nova arte. Depois dos seus trajectos revolucionários, pela China e pela Cuba de Fidel. Depois de ter estado ao lado dos Panteras Negras e dos contestatários à guerra do Vietname, nos EUA. Depois de ter reclamado militantemente o feminismo, e o direito a abortar, em França. Depois de ter homenageado Sempé, neste documentário: por entre hordas de manifestantes, aparece a realizadora empunhando um cartaz que diz «J’ai mal partout». Agora, e mesmo sem o enunciar, Agnès reivindica outro direito: o direito a divagar. Uma «velhota, roliça e tagarela», que conta a sua vida às arrecuas. E divaga à vontade, com o vagar dos velhos e a dispersão de quem pode. O filme abre com uma espécie de prólogo, um jogo de espelhos nas praias ventosas da Bélgica, que lhe evocam a infância, os dias iniciais, inteiros e limpos. Aí, diz, o vento é o verdadeiro realizador. É ele que dita se a écharpe de Agnès se vai ou não levantar, se vai ou não ocultar-lhe a face... Sempre foi o acaso o «seu assistente de realização». Para este filme, Agnès montou várias instalações, como esta da praia belga cheia de espelhos, em que a própria se reflecte. Em que reflecte os seus jovens assistentes, o mar, a areia e o céu. E ela, sempre ela, através dos outros e dos elementos.

Para estas Praias, Agnès convocou ventos e mares do Norte, memórias derivativas, excertos dos seus filmes, e dos do marido Jacques Demy, as suas fotos de início de carreira, fotos de família, os filhos, as casas, os lugares, os amigos, os actores, e também alguns puros e belos devaneios. Como os dos trapezistas numas felinianas acrobacias de beira-mar. Ou o da baleia encalhada com um Jonas muito ao estilo odalisca, dentro da barriga. Ou o dos amantes de Magritte, no pátio parisiense, pardieiro entre uma mercearia e uma loja de molduras, que se tornou no epicentro do seu quotidiano e da sua arte. Ou as muitas reconstituições de época, dos tempos da guerra, em que ela e os quatro irmãos viviam na França colaboracionista, entoavam o hino de Vichy e habitavam um barco do porto, sempre munidos de colete salva-vidas de cortiça, porque de 15 em 15 dias havia um que caía.A realizadora que esteve na génese do cinema moderno – chamam-lhe a «avó da nouvelle vague», apesar de não ser cinéfila –, que conheceu Godard, Jim Morrison, Harrison Ford, Fidel Castro ou Serge Gainsbourg, espraiou-se neste auto-retrato assumidamente deformado, algo narcísico mas cheio de auto-ironia, e fragmentado, como os mosaicos antigos de que tanto gosta. Pode não ter o encanto e o equilíbrio de Os Respigadores e a Respigadora (2000), mas a seu modo também é um respigar de um século. E de alguns momentos altos da loucura tão saudável e provocadora de Agnès. Encheu a Bienal de Veneza de 700 quilos de batatas, para montar uma instalação. Cobriu de areia o asfalto da rua Daguerre, onde mora, para reinstalar o seu escritório na praia. Forrou uma cabana de fita de um filme inacabado. É esta a sua casa.

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