quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

O gosto de Afonso Cruz

As Aventuras do Príncipe Achmed, de Lotte Reiniger





Platão, com a sua caverna, profetizou o cinema, com a única diferença de o filósofo ter querido manter os espectadores agrilhoados, provavelmente com medo das reacções destes ao expressionismo alemão. Uma pessoa, quando entra no cinema, sabe que está a entrar numa alegoria: as sombras da realidade projectadas na parede, o quase extinto homem da lanterna e a pré-histórica luta de cotovelos por um espaço nos braços da cadeira. Destas experiências na escuridão ficam muitas cenas que passam a fazer parte das nossas memórias. E não deixa de ser curioso que a nossa memória seja construída com tanta ficção. Quando caminho pelos jardins de Lisboa, onde se joga bisca dos nove entre outros dominós, não consigo deixar de ver aquela coisa iconográfica que é o jogo de xadrez entre a Morte e Antonius Block. A realidade, ou lá que lugar é esse onde vou às compras, está cheia destas sombras. Há dias simples em que a minha vida se assemelha a uma curta-metragem de animação checa ou, pelo contrário, àqueles tamborzinhos da cena final do Karaté Kid II. E há a banda sonora. Foi, por exemplo, graças a uma já mencionada curta-metragem checa, por sinal, mexicana, que ouvi pela primeira vez uma música chamada La Llorona. No filme (Hasta Los Huesos), quem a cantava era Eugenia Léon, mas a versão mais bela (isto não é uma opinião, é científico) é a de Chavela Vargas. Passei a coleccionar esta música (tenho dezenas de versões) mas, quando reparei que Dulce Pontes também a cantava, perdi todo o interesse no coleccionismo. É engraçado como uma banda sonora nos faz gostar de filmes ao ponto de os recordarmos, acima de tudo, pelas cenas “que têm aquela música”. Desde Everyboy Wants To Be a Cat (Aristogatos) a Put The Blame On Mame (Gilda), passando por aquele momento em que Paul Le Mat (John Milner), no American Graffiti, desliga o rádio (ouvia-se Beach Boys) dizendo que o rock'n'roll morreu com a morte de Buddy Holly.

Voltando às sombras, escolho uma cena de As Aventuras do Príncipe Achmed, de Lotte Reiniger. Não por ser um filme esteticamente perfeito (sim, esta noção existe e é até muito parecida com Rita Hayworth), mas por seguir as directrizes de Platão para a construção cinematográfica: um mundo de sombras projectadas, cheio de mil e uma noites.


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