quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Despedimento sumário

Adeus, Até Amanhã, de António Escudeiro



E um dia ao angolano António Escudeiro disseram: «Vai-te embora!». Corria o ano de 1975, trabalhava com imagem, para o governo de transição do MPLA. «Vai-te embora mas não amanhã, vai hoje, agora!». A 16 de Setembro, sem malas, sem resgatar o depósito bancário, só com a t-shirt e os calções que trazia vestidos, o realizador, fotógrafo e director de fotografia aterrou noutros horizontes (exíguos), noutras temperaturas (amenas), noutro continente (branco), noutro mundo (também amotinado). Há trinta e dois anos, António Escudeiro disse «Adeus». Hoje diz apenas «Até Amanhã». Um documentário (acabado de sair em DVD) on the road, quatro mil quilómetros em 25 dias, de Angola, ao Lobito, Huambo, Huíla... Um roteiro sentimental, sem nostalgias estéreis, nem saudosismos serôdios. Em que cada plano, captado quase sempre com tripé, tem a força de uma fotografia, de enquadramentos avaliados, e pontos de fuga e luz calculados ao pormenor. Escudeiro percorre aquela geografia que sempre considerou tão sua, desde o nascimento, infância, adolescência e idade adulta: «Sou angolano, sempre fui. Nunca me considerei outra coisa». E desce (ou seria melhor dizer, sobe) àquele «estranho paraíso». Entra nas suas velhas casas de infância, hoje pele e osso, descarnadas daquilo que foram. Passa por fachadas cravejadas de balas. Atravessa cidades fantasmas, onde os governantes vestem Armani, e o povo ainda agora renasce, na pujança dos mercados, cinco anos passados da guerra. Tira sangue («um gesto simbólico») no velho e desertificado hospital – para depois se cruzar com a enfermeira, por acaso, na rua, que o alerta para os valores baixos de hemoglobina. Viaja nos obsoletos comboios, que de vagões de mercadorias se fizeram carruagens de passageiros. Demora dois dias nas crateras lunares do alcatrão, quando dantes o percorria em meia dezena de horas. Passa por colunas de 40 atascados e resignados camiões. Percebe em Luanda que as maiores inseguranças são os seguranças, as extorsões e «o dinheiro para a gasoza». No Huambo, detém-se no arruinado cinema Ruacaná, corroído por dentro como uma cárie dentária. Senta-se na plateia, espectador de coisa nenhuma. Era ali que haveria de começar o filme. Assim foi. «Este filme é um olhar, apenas isso, não foco o lado subjectivo, não critico nem elogio. Deixo que quem vê pense por si». E apesar de ter ficado «chocantemente sensibilizado com o acolhimento das pessoas», Escudeiro nunca se deixa contagiar pela emoção, e mantém uma notável e rara equidistância nos comentários em off, «mas lá que foi muito comovente foi»: «Este não é um filme sobre mim, é um filme a partir de mim». E sobre o recado subliminar contido nas palavras de Ondjaki: «Quantas noites são precisas para fazer uma madrugada em Angola?»

Sem comentários: