terça-feira, 29 de setembro de 2009

De volta à Arena

Reportagem em Marvila

Arena, de João Salaviza, a curta portuguesa que ganhou a Palma de Ouro em Cannes, chega agora às salas, na primeira parte de Woodstock, de Ang Lee. Fomos à Quinta da Flamenga, bairro social onde o filme decorre, e assistiu ao público que assistia a uma ante-estreia muito especial. Saiba a história deste filme







No Rio de Janeiro há excursões que se organizam a favelas. O turista de gostos exóticos enfia-se numa carripana e deslumbra-se com as vistas, em perfeita segurança, porque a organização assim o diz. Comenta «How typical» e logo passa ao próximo spot, talvez o Corcovado, talvez o Pão de Açúcar. Também por umas horas o bairro da Flamenga se enche de ‘turistas atrasados para o Verão’, como alguém lhes chamou, que aproveitaram a oportunidade, não só de ver o filme, como de conhecer o décor. Alguns ainda para fazer campanha, política ou de outro género. Tudo ali se junta e se confunde, perante um público, apesar de tudo, maioritariamente de moradores da Flamenga, ao qual o realizador João Salaviza faz questão de dedicar a exibição.

Público este que se divide, prudentemente, entre a tolerância e a desconfiança, não vá o diabo tecê-las. Já sabem que um dia não são dias. E que no dia seguinte ficará tudo na mesma e nenhum dos visitantes voltará a beber um copo na Pastelaria da Bela Vista, apesar da cerveja ser bastante em conta: 80 cêntimos a imperial. Mas por momentos, ainda que por breves momentos, a coisa parece bonita. Aquele cocktail social, insolúvel, por mais que se mexa, toma ares de harmonioso, faz-nos acreditar, por segundos, num mundo melhor. Ou talvez não seja para tanto. Apenas saber que o mundo do fim do mundo também é mundo. E que, visto ao longe, toda a gente é apenas gente. E ao perto também.

O pretexto para a festa são os 15 minutos do filme de João Salaviza, Arena, o tal que, feito inédito para o cinema português, ganhou a Palma de Ouro em Cannes, cidade balnear coquete, tão distante da Bela Vista como Nova Iorque de Bagdad. O filme passa-se ali mesmo, no bairro, mais concretamente na malha H, que não são mais do que dois blocos de apartamentos unidos por três pares de passadiços, trancados sobre si próprios.

Em baixo, onde agora está montada a tela, e se distribuem cadeiras (400 no total) em tempos passaram carros, mas o ambiente era tão ruim, que resolveram cortar o trânsito. Ficou assim a malha H entregue a si própria, em jeito de gueto, lá para os lados de Marvila, na zona oriental de Lisboa. Ainda agora, à noite. a coisa torna-se difícil, e os moradores têm medo de outros moradores, e preferem refugiar-se das ruas. «Ninguém faz mal a ninguém, mas as pessoas têm medo», diz-nos o senhor Carlos, presidente da associação de Moradores, depois de explicar, ao telemóvel, o caminho a Helena Roseta.

Hoje é uma noite diferente e ninguém diria que esses problemas existem. Não fosse o vento frio que galopa pelo corredor entre os passadiços e se entranha nos ossos, seria uma noite perfeita para cinema ao ar livre. A rua até é ligeiramente inclinada, dando a ideia de anfiteatro. Na antiga Roma, era nos anfiteatros que se digladiavam os homens e os leões. Mas o chão que pisamos não se parece com uma arena. Tal como no filme, a arena fica lá para cima, nas bancadas, fechadas e misteriosas que escondem mundos e histórias. Olhando bem, tudo aquilo lembra um estabelecimento prisional, a prisão-hospital de Caxias ou coisa assim, com passadiços entre celas e até torres de vigia. É incrível que morem ali pessoas livres, tão reféns de si próprias. Que arquitecto se terá lembrado de tal desenho? As intenções são sempre as melhores.

Foi esse aspecto de cárcere que levou João Salaviza a escolher a malha H como cenário. O protagonista está em prisão domiciliária, com pulseira electrónica no pé e sai para perseguir uns gandulos, que não são mais do que miúdos. O bairro é a própria prisão. A sociedade prende-os fora da vista. Já estiveram pior, é certo. Os que ali moram foram realojados do bairro do Relógio. Ao contrário do que é típico em alguns guetos suburbanos, como a Cova da Moura, a maioria da população é portuguesa. Na Flamenga habitam cerca de 2500 pessoas, mil só naquela malha H.

A Flamenga não se terá propriamente vestido a rigor para a ante-estreia do filme, e consequente visita de políticos, artistas, jornalistas e televisão. Mas aperaltou-se à sua maneira. Há uma tranquilidade aparente, enquanto a festa se monta. Está a passar futebol na TV e diz o bom senso que não vale a pena escolher a bola como adversário. Um repórter de imagem hesita em abandonar o tripé enquanto sobe a escada, para filmar o local. A jornalista diz que ninguém rouba. E ninguém rouba mesmo.

Aos poucos as janelas vão ficando povoadas: é privilégio raro fazer da varanda de sua própria casa um segundo balcão. Outros descem. E à hora do arranque o pátio da Flamenga está a abarrotar. Antes, porém, uma primeira parte peculiar, um grupo de crianças dançarinas, apresenta o seu número no palco.

A curiosidade é grande. Durante uma temporada a equipa de João Salaviza invadiu pacificamente o bairro, com o seu aparato técnico e humano. Serviram-se de uma casa vazia no segundo andar, que habitaram diariamente. Primeiro, sem câmaras, para ganhar a confiança da população. «As pessoas desconfiaram porque estão habituadas a ser notícia apenas pelos piores motivos». Desta vez o motivo é grande. Dos maiores: uma obra artística.

Essa convivência com a população é notável no à-vontade de todos. Principalmente dos actores. Carloto perde-se entre a gente, como se estivesse em casa. E o jovem Rodrigo Madeira, que se estreia aqui, circula com natural destreza, é morador de um bairro vizinho, e joga na equipa de futebol que é treinada pelo sr. Carlos. A história do filme poderia ter acontecido lá para as tuas bandas, Rodrigo? «isto e muito pior». O seu maior sonho é prosseguir a carreira de actor. Mas não é fácil.

A emoção vem ao de cima, enquanto o projector aquece: «Prefiro muito mais estar aqui do que em Cannes. É muito mais genuíno» Diz Carloto Cotta, o actor que viajou com Salaviza para ir buscar a Palma d’Ouro. E acrescenta: «Isto de actuar é como jogar à bola, depois de fazer o clique tudo corre bem». E o seu clique mereceu os mais variados elogios. Só que, infelizmente, de momento não tem nenhum filme em rodagem.

Não é a primeira vez que a Flamenga é cenário de filme. Por ali passou o Crime do Padre Amaro e vários spots publicitários. «Somos Hollywood de Marvila», diz, brincando, o sr. Carlos, com o seu equipamento vermelho de futebolista. Não esconde uma felicidade imensa por ter tantas visitas no bairro e desdobra-se em conversas e entrevistas, sempre diplomata, sempre bem-falante.

Muitos outros mantêm uma distância prudente. Mas chegada a hora do filme, ninguém, mil olhos espreitam por todas as janelas, portas, passadiços. Um clima que lembra um neo-realismo à italiana. Ali cabe mais gente do que no São Jorge.

À medida que a fita roda, avolumam-se os comentários: isto é aqui, isto é acolá, isto já não sei onde é. Não sabem porque, uma parte do filme foi filmada numa fábrica abandonada lá para a Portela de Sacavém, onde o JL acompanhou o João, numa sessão fotográfica. Ao ar livre, o cinema é à antiga, com comentários, assobios, gargalhadas. Tudo no extremo da vivência genuína. As pessoas gostam, porque vêem-se a si próprias, garante o sr. Carlos. Uma senhora, gorda, de avental, com ar de mãe de todos, comenta: «Ficam a pensar que aqui no bairro são todos gatunos»… talvez não fiquem, talvez não fiquem. Uma outra mulher reclama com Carloto, dando-lhe palmadas no braço, «então filmaram a minha mãe!?». O actor não tem culpa.

E o filme acaba, pouco depois de começar, afinal é uma curta-metragem, de apenas 15 minutos. As pessoas verificam, desoladas, já acabou? Tanto aparato para tão curto. Curto mas intenso, como o café que bebemos. Todos sabem que, rapidamente, tudo volta ao normal. Os políticos vão para a campanha, os jornalistas para as redacções e a Flamenga volta a ser a Flamenga de sempre, entalada entre o Parque da Bela Vista e o Feira Nova. «Estamos a organizarmo-nos para ter actividades de três em três meses», garante o Sr. Carlos. Quanto ao filme: «Eu tenho dito aos jornalistas que as pessoas gostaram». E ninguém tem dúvida que poderia ter acontecido ali, esta ou outra história.

O cinema foi até à Flamenga, com a pompa de visita de estado. Agora é a Flamenga que vai aos cinemas, com a exibição de Arena, na primeira parte de Woodstock, de Ang Lee, em 16 salas pelo país. No bairro, ouve-se o reboliço, os comentários animados e ainda dá tempo para mais uma cerveja. O assistente da produtora apressa-se a guardar a cópia do filme, enquanto outros vão desmontando as telas. No estacionamento, os carros arrancam em direcção a pontos mais visíveis da cidade. Arena despede-se da Flamenga. Na esperança de uma segunda sessão.


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