quinta-feira, 12 de novembro de 2009

O fantástico senhor raposo - crónica de um festival



A terapia de grupo de Juliette Binoche, a futurologia de Coppola, a pedalada de David Byrne e a omnipresença de Paulo Branco. E os filmes, acima de tudo... Crónica de um festival

Há muito que andávamos avisados. Quando a publicidade é grande, o povo desconfia. Habituámo-nos a andar com uma espécie de calculadora mental que executa automaticamente o cálculo de desconto ao superlativo. Quando diz que é extraordinário, é porque é razoável; quando diz que é óptimo, é porque é apenas bonzinho, vá; quando diz que é genial, é porque atingiu os patamares mínimos de QI; quando diz que é admirável, é porque é visível... Portanto, quando no trailer promocional do Estoril Film Festival nos diziam que o David Byrne, o vocalista e guitarrista dos lendários Talking Heads, nos podia abordar «a pedir dez euros trocados para comprar o jornal», encaramos isso com a sobranceria cínica da raposa que volta o focinho às uvas. «Ah, mas são verdes». Mas, de súbito, há uma folha seca que cai, um segundo relance, e se...? E não é que é mesmo o David Byrne, aquele que vem ali a descer tranquilamente os jardins do Casino do Estoril? Sim, é verdade, não pediu trocos a ninguém como os arrumadores das imediações, mas vinha a pedalar uma bicicleta, o que dá um encanto muito especial a este, chamemos-lhe assim, avistamento. Desde os anos 80 que o músico, vencedor de um Óscar pela banda sonora do Último Imperador (de Bernardo Bertolucci), elegeu a bicicleta como o seu meio de transporte privilegiado em Nova Iorque. Mais por conveniências pessoais, do que por motivações políticas, começou a fazer destas pedaladas um posto de observação andante nas suas viagens pelo mundo. Foi assim, em contacto directo com os sobressaltos do alcatrão, os imprevistos do trânsito, e a poucos quilómetros por hora, que Byrne captou o espírito e o ritmos de Buenos Aires, de Londres, Istambul ou são Francisco. E escreveu-os nas crónicas publicadas no livro Bicycle Diaries. E agora Lisboa, e suas proximidades, estão também debaixo dos seus pedais. Foi uma das exigências (talvez melhor será dizer pedidos) que fez à organização do festival. Que lhe pusessem à disposição uma bicicleta. Duas. Outra para a mulher, a artista plástica Cindy Sherman, com quem pedalou por aí, mesmo debaixo de chuviscos, e visionou os 12 filmes europeus em competição. O casal fez parte da composição do júri, juntamente com o compositor francês de bandas sonoras, Alexandre Desplat, (autor das músicas de filmes como A Rapariga do Brinco de Pérola, de Peter Webber, a Rainha, de Stephen Frears, ou o Fantástico Senhor Raposo, de Wes Anderson, filme de abertura do festival) o coreógrafo Rui Horta e o também músico e produtor Mafred Eicher, director da ECM (produtora que acaba de celebrar 40 anos e por onde já passaram nomes como Keith Jarret, Chick Corea ou Pat Metheny). À VISÃO Byrne nega que pelo facto de vertente musical ter um peso tão esmagador na composição do júri tal não influirá na probabilidade de ganhar o filme com a melhor banda sonora. «Não sei nada de probabilidade». Alexandres Desplat mostra-se mais curioso em relação às opções sonoras dos filmes: «É uma coisa que me interessa muito. Faz parte do meu trabalho ir descobrindo soluções que os outros encontram para os filmes».


E Juliette Binoche foi a primeira a pisar a passadeira - tal como dizia, aliás, a publicidade do festival. Não a vermelha, que já foi tão trilhada e macerada pelas solas arrastadas do cliché jornalístico. Mas mesmo a zebra, a passadeira para peões, em frente ao Centro de Congressos, mesmo ao lado do Casino (foi aqui que se aquartelou o festival). Como se não lhe bastasse ser a mais internacional das actrizes francesas, Juliette tem, talvez, um dos mais belos rostos do mundo, disputado pelas grandes marcas de cosméticos. E como se não fosse suficiente, também faz umas pinturas e danças. E como se tudo isto não chegasse para abastecer uma carreira de 25 anos, Juliette ainda exibe uma espécie aura, capaz de emocionar toda uma audiência - há quem lhe chame charme, há quem prefira magnetismo pessoal.... Seja o que for, o certo é que o encontro com o público, após a apresentação do documentário Juliette Binoche Dans les Yeux, realizado pela sua irmã, Marion Stalens, foi uma das sessões mais sentimentais deste festival (senão contarmos com a do Fernando Lopes). Os muitos convidados estrangeiros do festival devem ter pensado que aterraram mesmo no país do fado. Houve imensas lágrimas contidas, vozes embargadas, elogios emocionados, vindas sobretudo do sector feminino da assistência. Mais do que um momento de perguntas e respostas tornou-se numa sessão de auto-ajuda ou de terapia de grupo. A adolescente cheia de dúvidas existenciais e aspirante a actriz que quer receber palavras de alento de uma estrela, a senhora que quer saber qual é o seu «secret garden»; a mãe cuja filha de treze anos gostava muito de actuar e que pede conselhos…«O actor deve desobedecer, se obedeceres estás tramado», diz. Bem, também não falta o senhor a comentar que ela é como «o vinho do Porto, melhora com a idade». «Fucking, i’m a human being. Of corse, i’m growing up!», exclama Binoche e passa à pergunta seguinte. Educada numa família de artistas, andou durante dois anos a ser recusada em castings, até que Jean Luc Godard reparou numa foto sua. «Nesse dia estava muito zangada com o meu namorado, daí aquela intensidade no meu olhar», brinca. Lembra-se de, numa dessas audições falhadas, um realizador lhe perguntar: «’Então, queres ser actriz’? Eu respondi-lhe: ‘Não, eu já sou uma actriz’».
O documentário não é brilhante (Binoche merecia muito mais), mas dá para observar – e invejar – o grau de liberdade com que ela ousa pisar outros territórios, como a dança e a própria pintura: «Pintar é transgredir. É dizer merde à técnica».
Já antes, Juliette tinha transgredido, mas pouco, no zeloso dispositivo de distribuição de autógrafos concebido por Paulo Branco. A bicha de pessoas de livros (um álbum Portait «In-Eyes» posto à venda com as pinturas da actriz) e DVDs na mão começa a formar-se 45 minutos antes da sua chegada. Geralmente nos eventos com alguma envergadura, os jornalistas estão habituados a que exista um director que centraliza tudo, e um assessor cuja função é impedir o acesso ao director. No Estoril Film Festival Paulo Branco é ambos. Tem uma energia inesgotável. Anda por ali, dá instruções, pratica todo o género de sinalética ao seu staff, enxota os jornalistas dos sofás, encosta os fotógrafos a um canto, vai receber Binoche à entrada, manda passar à frente o deficiente. Ele é ao mesmo tempo porteiro, guarda-costas, organizador de filas, controlador de autógrafos, fiscalizador dos livros vendidos… Tão depressa se exalta, extremamente zangado, como no minuto seguinte já distribui sorrisos e simpatias. Tão depressa anda a providenciar uma caneta de feltro pedida pela actriz, como a expulsar mais caçadores de fotos com telemóvel e pretendentes a autógrafos, que tentam furtar-se a comprar o livro. Até há quem sugira que ele, durante os visionamentos, se encontra atrás do projector a dar instruções. Paulo Branco diz «só mais uma», mas Juliette acaba por dar mais duas ou três assinaturas. Até àquele senhor que pede para ela escrever «for Toni, my love»…

Tetro (estreia-se no próximo dia 19), o novo filme do Coppola, ante-estreado neste festival tem um grande arranque. Num preto e branco absolutamente poderoso (o director de fotografia é o romeno Mihai Malaimare), uma lâmpada atrai as borboletas nocturnas. Também tem uma extraordinária introdução da personagem, Tetro, um alucinado Vicent Gallo, cheio de traumas e fantasmas do passado. Ele é o homem dos holofotes e queima as asas de quem dele se aproxima. Depois de Rumble Fish, é o regresso de Coppola ao preto e branco (neste filme inverte-se a convenção, o presente retrata-se a preto e branco, e o passado a cores, numa câmara mexida, como as imagens de uma home-vídeo). É um filme multi-risco – ainda por cima, parcialmente falado em castelhano – admite o próprio, considerando a perspectiva temerosa da indústria de Hollywood. «Não conseguiria encontrar mais maneiras de perder mais dinheiro». Só que agora, explica, o próprio Coppola, ele já não faz os filmes que a indústria, quer faz os filmes que ele quer. Durante muitos anos, esteve subjugado financeiramente ao sistema. «Sentia-me uma prostituta. Tentava apaixonar-me pelo meu cliente, tentar ver os aspectos bons do projecto…Nunca conseguiria fazer um filme se de algum modo não gostasse dele» Aliás, garante, nunca voltaria a rodar algo parecido com o Apocalypse Now. «Não voltaria a fazer um filme anti-guerra com explosões e mortes. A violência excita as pessoas. Gostaria sim de fazer um filme sobre uma família num cenário de guerra, como o Iraque. Mas em que não morresse ninguém. Isso si, seria o verdadeiro filme anti-guerra».
Por isso, desta vez, realizou uma história familiar, passada na Argentina, exclusivamente por razões de ter um bom câmbio para o dólar, «nunca conseguiria suportar os custos na Europa ou em Portugal. «Por outro lado, «porque me ponho a pensar num país divertido, e simpático, com boa comida, onde não me importe de passar um ano a rodar». Vicent Gallo faz de filho que não se consegue libertar da tutela emocional e genial de um pai, um dos maiores maestro do mundo («nesta família só há lugar para um génio»). É uma espécie de nova versão de James Dean, um ser torturado e cheio de angústias: «Todos os barcos precisam da sua ratazana». Mas a emoção não passa.
Baseou-se na sua própria família, na relação com o irmão e com os filhos. Coppola casou-se aos 21 anos, porque ao contrário da maioria dos rapazes da sua idade, o que ele queria era ter filhos. É casado há 46 anos com a mesma mulher e, quando os três filhos eram pequenos, decretou que sempre que as suas rodagens levassem mais de duas semanas, que os tirava da escola e levava-os com eles. Por isso, os miúdos cresceram no set. Nas Filipinas, Sophia, conta, entretinha-se a brincar com as roupas das filmagens e Roman fazia maquilhagens sangrentas. «A sua educação escolar sofreu com isso mas aprenderam muito». Mesmo em O Padrinho era esta relação entre pais filhos e irmãos que mais atraia Coppola. «Não me interessam os gangsters. Não são mesmo boas pessoas». Tem um método para escolher os actores «geralmente são aqueles que não nos saem da cabeça no dia seguinte. É uma boa indicação. Quer dizer que pode provocar a mesma reacção nas audiências. Neste filme, pode dizer-se, Coppola descobriu um outro Leonardo DiCaprio: Alden Ehrenreich. Tinha apenas 17 anos e o realizador deu-lhe a ler Catcher in the Rye, de D.J. Salinger. Quanto a Gallo, os amigos fartaram-se de o avisar, «ele é maluco, já viste o website dele?». Mas afinal ele era «a very nice person». Apenas têm um estranho sentido de humor. Quando diz que quer vender o esperma por milhares de dólares. «As pessoas pensam que ele está a falar a sério. Ou talvez esteja mesmo… parece um bom negócio…».
Perante duas salas de 600 lugares a abarrotar de entusiasmo (Paulo Branco fez uma segunda exibição de Tetro), Coppola explicou as suas «teorias malucas» sobre o futuro do cinema. «O cinema é uma linguagem, e todas as linguagens evoluem. O cinema só não tem mudado mais depressa, porque também é um negócio e os donos do negócio não querem mudar a fórmula, como a coca-cola, querem que permaneça igual. Mas o cinema tem de ter risco». O realizador explica que estamos numa fase pela qual nunca antes passáramos na história do cinema. A revolução do digital, a facilidade com que se fazem cópias, downloads e DVDs. O futuro não está no 3D nem nos efeitos especiais. Coppola prevê uma espécie de filmes interactivos, em que cada sessão seja única e diferente. O realizador torna-se algo de parecido com um condutor de orquestras ou com o DJ, que coloca, selecciona e manobra as músicas de acordo com a assistência.
Laço Branco, de Michael Haneke, Palma de Ouro em Cannes, e uma das ante-estreias mais aguardadas do festival define-se naquela palavra formada por justaposição e com hífen pelo meio: obra-prima e O Fabuloso Senhor Raposo, de Wes Anderson (a segunda exibição mundial), com diálogos a partir do livro de Roald Dahl (o autor de Charlie e a Fábrica de Chocolate) arrancou as gargalhadas do próprio David Byrne. Do tempo em que os animais falavam, a história conta a disputa entre uma família de raposas e três agricultores. As vozes de George Clooney, Meryl Streep, Bill Murray ou Willem Dafoe contribuem para tornar esta comédia ainda mais hilariante. E, como se aprende, as raposas quando estão encurraladas encontram sempre a mesma solução: cavar, cavar, cavar.

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