quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Amar sempre também cansa




O «fogo que arde sem se ver» com finais infelizes mas também não particularmente trágicos.
De que falamos quando falamos de amor no DocLisboa?

Falamos sempre da mesma coisa, apesar de os poetas tanto cantarem as suas indefinições. De «dor que desatina sem doer». É estranho só isso, encará-lo na sua nudez, sem, ao menos, a complacência de um «manto diáfano da fantasia». Nesta edição do DocLisboa (entre 15 e 25 de Outubro), o amor também comparece no imenso banho de realidade, que se firmou como referência internacional do cinema documental. Entre histórias sobre as mazelas por cicatrizar da ex-Jugoslávia (os Balcãs é a região em destaque), o extremismo da sinistra milícia iraniana Bassidji ou as agruras da emigração subsariana, lá está ele, tão deslocado como um sobretudo no Verão, na nova secção temática Love Stories (que substitui a dos Auto-Retratos do ano passado).

O amor sem maquilhagem, tão diferente daquele outro da ficção, o dos finais trágicos ou dos happy-ends. Pode não ser a secção mais excitante entre as 16 em que se exibem 200 obras, ao longo de 11 dias. Mas contém, seguramente, nas palavras do director do festival, Sérgio Tréfaut, «filmes de questionamento». É uma espécie de «síndroma Tom Baxter», ao contrário. No filme de Woody Allen, o intrépido explorador de
Rosa Púrpura do Cairo abandona o ecrã por causa de uma mulher e estranha que, na vida real, quando duas pessoas se beijam, não aconteça fade out. Nós também estranhamos que, nestes 11 filmes da secção, o amor não apareça tão composto como costuma acontecer na penumbra do cinema. É a vida.Ou como alguém diz a Cecília, a rapariga em fuga da realidade, no mesmo filme: «Afinal, o que é que preferes: um homem perfeito ou um homem real?» Eis a questão.

A primeira história de amor chega-nos da Alemanha.
Driving Men (15 e 22 de Outubro) é o retrato sentimental e muito umbiguista de uma realizadora americana «judia, cinquentona, solteira e um bocado maluca». Ou melhor, rectifica o director, «ela é mesmo doida varrida». A autora vai revisitando os homens da sua vida, filma-os ao volante de um carro (porque foi num acidente de viação que morreu o seu primeiro amor) e pergunta--se: «Porque é que eu nunca me casei?» Nos antípodas deste registo, está First Love (15 e 16), filme referencial do mestre polaco Krzysztof Kieslowski, que retrata sete meses de vida de um jovem casal, nos anos setenta. O realizador, conta Tréfaut, «sofreu tanto a fazer esta obra que nunca mais fez nenhum documentário». Também há a história (uma curta-metragem alemã) de Gitti (17 e 19), uma velhota septuagenária que escolhe o seu par através de um anúncio, e vai fazendo o seu casting amoroso. E de um par, na Mongólia, que vive separado pela distância da emigração, Long Distance Love (20 e 23), com realização sueca. Da Holanda chega o caso muito pragmático de um casal de gays e um casal de lésbicas que decidem unir esforços e células para fazerem um filho a quatro, em Mamas and Papas ( dia 16 e 19). Ao fim de cinco minutos de filme, nós já percebemos que «aquilo não vai funcionar. A vida não é assim tão simples».E mais casos de romeus e julietas no Afeganistão (War and Love in Kabul, 15 e 17) ou de viúvas que despertam para a vida, num salão de cabeleireiro (In Terms of Perms, 15 e 17), amores quotidianamente filiais (Padre Nosso, 16 e 18), amores aquecidos que nem as latitudes da Sibéria conseguem enregelar (Melting Sibéria, dia 16 e 18), e amores modernos, plurais e poligâmicos – todos abrigados sob o mesmo tecto multiétnico do Kosovo (Weddings & Diapers, dia 15 e 17). E é nos Balcãs que se encerra a secção, a lembrar que a região da ex-Jugoslávia, como dizia Churchill, produz mais História do que aquela que tem capacidade para consumir. E onde há histórias há documentários, e, acrescenta Tréfaut, «muito bom cinema», para além de Kusturica.

Na categoria Balcãs em Foco serão apresentados 17 filmes dos últimos dez anos, todos sediados na efeverescência ideológica, social e política de sete países que saíram de um só. Jonas Mekas, nome histórico do cinema experimental e independente, virá a Lisboa, numa co-organização que envolve o Museu Reina Sofia, a apresentar uma retrospectiva de 17 filmes seus; Pina Bausch será a artista homenageada; e o futebol vem «buscar novos públicos que não estejam tão conquistados para o documentário, mas o objectivo não é crescer a todo o custo». «Aliás, tentamos não crescer», atalha Augusto M. Seabra, que, este ano, torna a comissariar Riscos, com filmes mais híbridos e de fronteira, vindos da Tailândia, Indonésia, México, Irão, Palestina…Não se tratará de uma edição muito típica do DocLisboa, no sentido em que, desta vez, não é tão óbvia a vocação interventiva do festival. Ao contrário de Wiseman, o realizador convidado no ano passado, Mekas não reivindica mudar o mundo nem fazer cinema-denúncia. Por outro lado, sai uma boa fornada de documentários nacionais, em competição. Se, nas outras edições, muita da produção portuguesa denunciava algum défice de imaginação temática e formal, «estes filmes prometem fazer um bom percurso, em termos de festivais internacionais. A média de qualidade deu um salto e queremos acreditar que a sensibilização do Doc contribuiu para isso». No ano em que o Doc fala de amor, Sérgio Tréfaut fala de divórcio. Com a RTP e devido à ausência de serviço público – e ao desinteresse manifestado pelo documentário, ao contrário do que sucede noutras televisões europeias. Enfim, é a realidade... Chata, diria Woody Allen, mas «o único sítio onde ainda se pode comer um bom bife».

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