quinta-feira, 17 de setembro de 2009

De pintor e de louco...

Séraphine, de Martin Provost

Entrevista com o realizador do filme que arrebatou os Césares deste ano.





Uma força bruta. E uma motricidade fina apuradíssima. Séraphine a mulher de limpezas que, no princípio do século, se tornou numa pintora conhecida tinha ambas. Uma mulher do campo, que torturava a roupa dos outros no rio, que esfregava o chão ajoelhada com as suas mãos grossas, mas que, de repente, parava para contemplar as árvores e os campos.

Depois das tarefas domésticas mais braçais ia para casa e despejava toda a sua delocadeza nas telas. O magnífico filme de Martin Provost, a terceira longa daquele que é também actor e encenador, conquistou sete césares nesta edição, entre eles o de melhor filme e o de melhor actriz. E é sobretudo ela, a actriz belga Yolande Moreau que confere uma aura inesquecível a este filme.



FINAL CUT: Filmou a vida duma personagem poderosa da história da pintura, mas criou, ao mesmo tempo, uma personagem ainda mais poderosa da cinematografia francesa. A forma como a actriz Yolande Moreau se mexe, caminha e olha as árvores e os seus quadros é memorável ...
Como construiu esta figura?


MARTIN PROVOST: Yolande e eu, passámos um ano a construir a personagem. Falávamos muito dela e partimos no seu rasto em Senlis, por exemplo, até subimos as escadas do seu prédio, andámos nas ruas que ela tinha calcorreado, vimos os quadros, tentando encontrar os seus gestos. Yolande também aprendeu canto, teve cursos de pintura com pintores que refaziam as telas. Levei-a aos décors, para ver as árvores que eu encontrava. Foi uma grande caminhada em conjunto, e quando a rodagem começou estávamos prontos: Seraphine estava lá.

Ás vezes , ela lembra uma feiticeira ou uma alquimista que fabrica secretamente as suas poções mágicas...Quer comentar?

Temos poucos elementos sobre o mistério que envolve o fabrico das cores tão particulares dos quadros de Séraphine. Eu próprio pintei , sem ter um tostão, quando era muito novo e lembro-me de que me servia de tudo o que me caía nas mãos. Penso que Séraphine fazia a mesma coisa. Há algum mistério no próprio fabrico das cores.

É necessário ser um pouco louco para ser um génio?

Questão difícil, quando se sabe que o génio ultrapassa o humano. Mas será loucura ou clarividência? A vida em sociedade impõe regras que não são viáveis para todos.

O seu filme conta também a história de duas pessoas outsider que se encontram... Como a mulher a dias desprezada e esse coleccionador homossexual ?

Sim, é um dado fundamental. É isso que me interessa muito nesta história, o facto destes dois marginais se encontrarem graças à arte. Socialmente não têm nada em comum e no entanto ...

É muito interessante o modo como faz a ligação entre os planos espiritual e religioso e o plano plástico. Porque é que ela contava música sacra enquanto pintava?

É a verdade! Seraphine cantava sempre quando pintava, o que enlouquecia os vizinhos!

«As flores como insectos que voam...» Ou «como rugas em redor dos olhos»..., diz-nos uma personagem a propósito das pinturas de Séraphine... É assim que definiria a arte daquela pintora?

Sabe que quando houve uma exposição no museu Maillol, encerrei-me sozinho com os quadros durante um momento. E constatei o que já sabia, mas tê-los em grande número, defronte a mim, tornava a coisa ainda mais surpreendente, os planos de fundo dos quadros de Seraphine não são pacíficos. Há uma grande força, mas também um mundo interior bastante terrífico.

Qual o aspecto que lhe interessou mais no filme? A mulher a dias que se torna artista? A sua vida oculta? A sua relação com o coleccionador? A vida de uma pobre mulher na França rural, entre a guerra e a depressão económica? Encontrar esse ponto onde acaba a loucura e começa o génio?

Um pouco de todos esses pontos ao mesmo tempo. Mas lembro-me de que o que mais me tinha tocado logo de início, era que uma mulher, ainda por cima mulher a dias, com mais de 40 anos, ousa afirmar-se como artista numa época em que isso estava reservada aos homens.

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