quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Quando o herói é vilão

Inimigos Públicos, de Michael Mann





Mais de 74 anos depois da sua morte, John Dillinger, «o inimigo público nº1» dos EUA, regressa aonde sempre esteve: às parangonas dos jornais. Por causa de um outro Johnny. Depp já não é pirata nem barbeiro sanguinário. Mas continua fora da lei...

Pensam que o conhecem? Pensem outra vez.
Recordam-se de Jack Sparrow, o pirata das Caraíbas ou Sweeney Tood, o barbeiro sanguinário? Então esqueçam.
Lembram-se de O Bom, o Mau e o Vilão? Johnny Depp é todos os três ao mesmo tempo.
Há muito que não víamos o actor sem ser coberto por camadas de maquilhagem, ou com o olhar sublinhado por eye liner, com jeitos amaneirados, cabelos bizarros, trajes extravagantes e tiques clownescos (ou será melhor dizer burtinescos?). No novo filme de Michael Mann (Inimigos Públicos estreia-se hoje, quinta, dia 6), o camaleónico Johnny Depp entrega-se, não às autoridades, mas às audiências, sem máscaras, muletas, artifícios ou efeitos especiais. Que não os do virtuosismo do realizador e os de uma novo género de policial negro em alta definição. Que não os dos seus fabulosos músculos faciais, ou de um meio sorriso, ou de um franzir isolado da sobrancelha ou de outros subtis trejeitos que sempre denunciam um bom actor.
O papel de John Dilliger, o ladrão de bancos que foi declarado pelo FBI, nos anos, como «o inimigo públicos nº1 dos EUA», assenta-lhe como uma luva. Ele «calça» a personagem. E aquilo serve-lhe, sem acertos, sem uma ruga, sem um engelho. É um gangster, sim. Mas um gangster com estilo.

A verdade é que Johnny Depp tem um bom design facial. E a figura de um criminoso procurado «dead or dead» é bem capaz de ser, ao fim de 45 anos (tem mais filmes do que anos de vida), o seu mais honesto desempenho.
John Dillinger foi mesmo capturado como as autoridades previam: morto. Alvejado pela polícia, numa emboscada, na noite de 22 de Julho de 1934, o «inimigo público» saía de uma sessão de cinema do Biograph Theater, na Lincoln Avenue, em Chicago. Tinha 31 anos. «Morreu da mesma maneira como viveu: num instante», segundo as palavras de Clark Gable, gangster a fingir, no filme Manhattan Melodrama, a que o gangster a sério acabara de assistir. Foi uma epifania, daquelas que, pelos vistos, não acontecem só nos filmes.
Dillinger, depois de morto, continuou a tomar de assalto a mitologia urbana dos anos 30. Como uma pop star. Inúmeros relatos continuaram a testemunhá-lo vivo. Como Elvis. Dizia-se que tinham desaparecido membros do seu cadáver. Como Jackson. Compuseram-se canções, realizaram-se filmes. O FBI não o nomeou apenas «inimigo público»: condenou-o à condição de mito.
No filme de outrora (1934), um Clark Gable a preto e branco dá os últimos passos no corredor da morte, antes da cadeira eléctrica. Na vida real, Dillinger também deu os seu últimos passos, no meio da multidão, antes de um tiro lhe perfurar a nuca. No filme de 2009, Johnny Depp, com um bigodinho e penteado à Gable, acaba de protagonizar um daqueles momentos raros. Na galeria de heróis vilões da história do cinema (ver caixa), onde se perfilam Bonnie and Clyde (Faye Dunaway e Warren Beatty) Butch Cassidy and the Sundance Kid (Paul Newman e Robert Redford) ou o genial impostor do Cath Me If You Can ( Leonardo Di Caprio), é preciso arranjar espaço para a dupla de Johns (Dillinger e Depp).
Tal como os polícias tiveram de arranjar espaço, naquela noite, entre a multidão que se amontoava para ver o corpo estendido do homem mais procurado da América. É a penúltima cena do filme. Os polícias a tentar abrir espaço entre os transeuntes. Todos queriam vê-lo, conta-se que as mulheres embeberam lencinhos no seu sangue derramado na calçada para guardarem como souvenir este precioso ADN. Nos dias seguintes, centenas e centenas de pessoas formaram fila para contemplar o cadáver em exposição na morgue, munidos sabe-se lá de que voyeurismo mórbido ou de que necessidade de prestar a última homenagem.

É que Dillinger não roubava só bancos. Dillinger roubou durante anos todo protagonismo e a atenção mediática e jornalística do país. Os olhos dos americanos estavam pregados nele, seguiam-lhes as passadas, as fugas, as façanhas, as capturas, os assaltos. A equipa de Michael Mann pesquisou os jornais de época para elaborar o guião. Não havia dia em que não houvesse notícia, rumores, ou badalações. O nome de Dillinger comparecia sempre nas letras gordas, abastecia as parangonas. «Como nem o presidente Obama», comentou o realizador.

O povo seguia-lhe as proezas em episódios como uma novela. Dillinger era o herói dos pobres. E pobreza era um substantivo bastante disseminado à época. Estávamos nos tempos da grande depressão. Passava-se fome, tragava-se o pó da estrada. Os grandes mafiosos ocupavam o trono do lucro nos bas-fond dos negócios paralelos. Um tal Hoover (o famoso director do FBI, entre 1924 e 1972), artilhado de argumentos populistas e de ambições políticas, aproveitou para fazer aprovar leis que controlassem e vigiassem a população. Havia que desviar a atenção da crise e do grande capital. (onde é que já ouvimos isto?). E também do verdadeiro e opulento crime organizado que corroía o edifício da economia do país, como infiltrações na parede. Nada como um gangster bem parecido e audaz, que se viu assim com a palavra wanted por baixo da fotografia.

Na realidade, Dillinger não tinha qualquer vocação de Robim dos Bosques. Nem Chicago da altura era a floresta de Sherwood. Nunca fez qualquer tensão de partilhar o espólio dos seus saques com os pobres e desventurados que abundavam pela região. Mas ao que parece possuía algum sentido democrático no seio da quadrilha, e procedia a uma repartição equitativa de dólares O seu alvo eram os fundos públicos, não assaltava carteiras privadas, não gostava de raptos, e só matava algum polícia, quando este se intrometia na mira da sua arma. Fazia reféns, utilizava os clientes bancários como escudos humanos nas suas fugas. Mas tratava-os cordialmente. Conta-se até que uma vez deixou gentilmente uma refém à porta de sua casa. Era um gentleman. No filme, vemo-lo gentilmente a aconchegar os casacos – tanto o da amante como o da sequestrada.
Dillinger nasceu numa quinta de Morrisville, em Indiana, órfão de mãe aos três, foi criado por um pai que lhe batia, «pois não conhecia outra forma de o educar». Gostava de baseball, de carros rápidos, de corridas de cavalos e de ir ao cinema. E só uma coisa lhe tirava o sono: «O café». Mas como outro bandido, o Jeremias de Jorge Palma, não era do género de se «sentir uma vítima da sociedade». Agradava-lhe a popularidade. E da forma ( já agora só para prosseguir com a mesma música), «como os homens respeitáveis se engasgam quando falam dele/ e como as mulheres murmuram: o fora da lei».
Numa das suas mais célebres fotos de captura, Dillinger faz pose apoiando o braço provocatoriamente sobre o promotor de justiça, que o exibia à imprensa. E ao ver a foto não se sabe ao certo quem é a presa ou o predador. A foto fez furor, até porque, com os dedos o ganster simulava uma pistola, o que foi entendido como um sinal de estímulo para o seu gang. O seu número de fãs crescia na mesma proporção que se arruinava irreversivelmente a reputação do tal promotor.

O filme abre com uma marcha forçada de prisioneiros de farda às riscas, como se usava na época. Este bater de pés ritmado e colectivo no chão há-de marcar a forma trepidante com que a narração será conduzida até ao fim. Depois de sucessos como Heat (1995), Colateral (2004) ou Miami Vice (2006), uma estreia de Michael Mann encara-se sempre como um acontecimento. Mas Inimigos Públicos é, sem dúvida, aquele em que o realizador atingiu a excelência.
Não só pela grandeza da personagem e do actor que a encarna.

Não só pela pujança visual ou pela magnífica banda sonora de 16 temas, onde comparecem Billie Holiday, Benny Goodman, a cantora do momento Diana Krall (que faz um cameo numa cena num salão de baile) e Otis Taylor, com Ten Million Slaves, a música, que confere ainda mais energia às sequências de fugas e perseguições.

Não só por ser um daqueles filmes, em que nunca se rompe o fluxo hipnótico entre o espectador e a tela. As pessoas embarcam, e evadem-se como Depp se soltava das grades: por duas horas, libertamo-nos da realidade prosaica que nos cerca.

Inimigos Públicos é construído quase como um paradigma geométrico, um trapézio em suspenso, equilibrado em dois pontos. O filme começa com a prisão e evasão de Dillinger. Uma hora depois o ciclo completa-se. De regresso à prisão, o inimigo público está novamente em vias de evadir-se, desta vez de uma forma absolutamente metódica, quase como se fosse um jogo de computador em que se ultrapassam sequencialmente uma série de barreiras para se poder passar à fase seguinte. Mann parece adepto da máxima «show, don’t tell». Os tempos miseráveis da Grande Depressão Mann reinstala-os eloquentemente num único plano. Quando uma pobre mulher e o seu filho, frente a uma casa decrépita e desolada, pedem a Dillinger que os leve com ele.
Os diálogos são excelentes, o ritmo é o de uma maratona estratégica, em que os pontos de pausa servem para poder recuperar a energia para o sprint final. Perfeito o guarda-roupa (os 80 chapéus foram de feltro foram produzidos pela empresa Fepsa de S. João da Madeira) e o casting. As personagens têm zonas sombra e tridimensionalidade. As suas apresentações ao espectador é feita de uma forma exemplar. Tal como vem nos livros.

O antagonista/polícia é outro dos actores mais «sex-simbolizados» dos últimos tempos (Christian Bale) que aparece nos campos a perseguir e a matar, não sem avisar primeiro, um bandido, ao som do tal tema de Otis Taylor. Marion Cottilard (Óscar de Melhor Actriz pela sua encarnação de Edith Piaf), é antevista, pela primeira vez por Depp, num salão em que Krall canta Bye Bye Black Bird. A química entre Depp e Cottilard é muito convincente e o filme está cheio de cenas memoráveis, quase perfeitas. Aquela em que Depp algemado dentro do carro da polícia faz um leve aceno presidencial à populaça que se aglomera nas bermas, à sua passagem. Aquela outra em que o criminoso contrata um dos mais demagogos advogados que têm aparecido pelo celulóide. Aquela em que Depp concentra toda a tensão do mundo num músculo franzido da testa, enquanto aguarda passagem num fechado.
O guião está todo ele construído como um encadeado coerente de set ups e pay offs, como um poema de ritmas alternadas, em que determinado pormenor da história vai «rimar» com outro mais adiante. Ou como um jogo de espelhos, em que Dillinger é espectador de si próprio. No cinema assiste ao spot publicitário que apela às pessoas para olharem para a direita e para a esquerda, não vá o homem mais procurado da América estar sentado na sua fila. Um belo dia, ele próprio resolve entrar no Dillinger Office, o departamento policial encarregue do seu caso e da sua captura. O escritório está semi-deserto. Quase todos os detectives andam a procurá-lo num lugar onde ele seguramente não está. Depp faz uma ronda pela parede, onde desfila a sua vida, em recortes de jornais, em pistas e transcrições de escutas telefónicas. Passa em revista os membros do gang já aniquilados, retém-se nos olhos da sua fotografia e pergunta a um grupo de polícias agrupados em redor de um rádio, a como está a partida. Dillinger «assiste-se» pela última vez no filme Manhantann Melodrama. As últimas imagens a preto e branco que as suas retinas fixaram eram as de um gangster que não tem medo de morrer. Daí a nada há-de dar-se a execução e regressar a voz de Krall com Bye Bye, Black Bird (o título da canção rima com a personagem de Clarck Gable, o gangster a preto e branco, chamado Blackie) . Depp sopra qualquer coisa aos ouvidos do polícia que o abateu. Os mortos têm sempre a última palavra.

2 comentários:

Roberto Simões disse...

Ainda não vi o filme e, admito, não estou muito motivado para o ir ver ao cinema. Fica depois para o DVD.

Excelente crítica, escreves muito bem, com clareza, parabéns!

Cumps.
Filipe Assis
CINEROAD - A Estrada do Cinema

Ladislau disse...

Agora os gangsters também são heróis... Basta ver o Valentim e o Isaltino.
Com 5 olhos abertos tenho mesmo que ir ver o filme antes que os porcos me engripem.