sexta-feira, 14 de agosto de 2009

O Gosto de João Salaviza pt.2

A Palavra, de Carl Dreyer


O tempo de uma morte

Na secção Grande Cena / O Gosto dos Outros, João Salaviza, vencedor da Palma de Ouro em Cannes, com Arena, faz uma dupla proposta. Uma comparação entre cenas de Soy Cuba, de Mikhail Kalatozo (publicado ontem) e A Palavra, de Dreyer. Nesta secção, convidamos personalidades a escolher e comentar cenas ou sequências de filmes.





Se em Soy Cuba o plano-sequência funciona como um dispositivo de apropriação da câmara sobre o espaço, na sequência analisada de A Palavra – aquela em que Inger morre – parece existir uma espécie de moral que impede Dreyer de interferir num momento tão sagrado como o de uma morte.
Este plano apresenta características antagónicas ao plano analisado de Soy Cuba: em A Palavra, a câmara permite que as coisas tenham um tempo próprio, através da procura de uma neutralidade. A câmara não é omnisciente, e, embora tecnicamente represente uma suposta voz da narração (ainda para mais se considerarmos o tratamento teatral e frontal que é dado ao espaço), é uma narração muito discreta, numa mise-en-scéne ilusoriamente simples e minimal. A câmara move-se porque o tempo das personagens o pede, e não porque interesse afirmar ou reiterar determinados momentos em detrimento de outros. Em vez de hierarquizar, Dreyer opta por “neutralizar” o ponto-de-vista: se é um filme sobre a fé e o questionamento da mesma, então deve-se deixar espaço para que o espectador decida por si de que lado quer estar. No da crença ou no do cepticismo.
A sequência que proponho analisar é aquela em que Inger morre, dentro do quarto. Aquilo que vemos é Johannes – o filho que acredita ter incarnado Jesus Cristo – a entrar em cena depois do médico afirmar que salvara Inger.
E a partir do momento que Johannes entra em campo, não existem mais cortes até ao fim da cena (com o pai e o irmão a saírem da sala). Nesta micro cena filmada num único plano, aquilo que vamos assistir representa uma enorme sofisticação na mise-en-scéne e no trabalho sobre o tempo: Johannes profetiza a morte de Inger, através de uma estranha conversa com a luz projectada na parede pelo farol do carro. Johannes vê nessa luz um elemento metafísico (Deus? Diabo?), enquanto que o pai e o irmão o tentam tranquilizar, dizendo-lhe que “ – é apenas o farol do carro”. No fim deste diálogo entre a palavra de Deus e a palavra do Homem, Johannes sai de cena deixando uma frase profética (que prepara o set up para a cena final): “- Na hora da fé, vós tendes que fazê-la reviver.”
E momentos depois de Johannes sair de campo, surge o seu irmão mais velho, anunciando que a sua mulher acaba de morrer. O pai e o filho saem da sala, e entram no quarto onde Inger jaz.
É uma das mortes mais sofisticadas em toda a história do cinema: o espectador percebe retrospectivamente que acabou de assistir a uma morte em tempo real, simbolizada por uma luz numa parede que se dissipa lentamente, poupando Dreyer ao espectador o “pecado” de olhar directamente para Inger no seu derradeiro momento.
Dreyer, ao filmar esta morte num único plano, efectua uma operação em que o fluir do tempo atribui ao acto de morrer (e à própria cena) uma dimensão totalmente real por não sentirmos qualquer interferência da realização ou da narração sobre aquilo que acontece. O tic-tac do relógio na parede marca um ritmo contínuo que não é interrompido. Dreyer opta pelo plano-sequência porque não lhe interessa levantar a questão: “o que é que acontece e o que é que existe entre dois planos?”
Por outro lado, Dreyer confere a este momento uma dimensão não apenas real mas também transcendental, ao deixar passar a ideia de que Johannes viu algo (“o homem da ampulheta”) neste momento que os seus familiares não conseguiram compreender.
Se efectuarmos o exercício de imaginar a cena construída com base num esquema mais clássico (por exemplo, um campo e contra-campo entre Johannes e o seu pai), podemos depreender que a montagem iria contaminar a noção de tempo através das suas reiterações e inevitável hierarquização. Esta cena seria menos interessante, porque o espectador poderia sentir a sua construção em fragmentos de tempo. Aliás, a morte tem sido quase sempre representada no cinema através da fragmentação temporal.
Mas Dreyer filmou o tempo de uma morte.

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