quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Há festa na aldeia

Aquele Querido Mês de Agosto (DVD), de Miguel Gomes





Da televisão pouco se recomenda, mas mesmo por ali se descobrem pérolas. A Liga dos Últimos é um dos melhores programas da televisão portuguesa. Transmitido pela RTPN e RTP1, é um magazine futebolístico em que o futebol tem pouca importância. Muito pouca. Serve de pretexto para chegar ao país profundo. Um Portugal rural, escondido, recôndito, com personagens fantásticas e realidades que parecem anacrónicas. Ao ponto de se poder perguntar: com uma realidade assim de que serve a ficção? A mesma pergunta se pode encaixar em Aquele Querido Mês de Agosto, a segunda longa-metragem de Miguel Gomes, um cineasta ainda jovem com uma carreira brilhante (Inventário de Natal, Entretanto ou Cântico das Criaturas merecem ser obras de referência no panorama das curtas portuguesas).
A parte documental é a primeira a conquistar o público, exactamente pela sua perspicácia em descobrir personagens na realidade. Personagens extremamente fortes só ao alcance do mais imaginativo dos argumentistas. Se não fossem verdade tinham que ser inventadas. Hilariantes como as suas histórias e as suas figuras. Contudo incorre no risco por mais que o realizador o negue e diga que gosta de música pimba de se tornar nefastamente snob. Faz com que os urbanos se riam dos habitantes da aldeia. Mas as figuras são tão genuínas que não tornam assim tão clara essa possível leitura, e até se deduz respeito e carinho pelos retratados.
O documentário ancora a ficção, que quase seria desnecessária, mas fica-lhe bem. Uma história de amor adolescente, bem ao estilo de Miguel Gomes, que se enquadra perfeitamente no contexto.
E é um filme musical, que, sem preconceitos, se imiscui no universo da música pimba.
Colando tudo isto, a parte mais interessante de todas: a desconstrução do próprio cinema, num filme que tem a consciência de ser filme, um pouco ao estilo de Fellini, Nanni Moretti ou João César Monteiro. Tanto espreitamos à frente como atrás da câmara e sem construídos cenários dentro dessa falsa desconstrução cinematográfica. Por vezes essa desconstrução é por si só uma ficção. Mas é precisamente esse encontro de género que torna Aquele Querido Mês de Agosto um objecto fascinante. Os jornais obedecem a regras deontológicas claras, como a de separar os factos das opiniões. O cinema não tem que seguir regras. E nesta hibridez, o realizador opta por gozar de uma imensa liberdade.
Sem fronteiras. E quem quiser saber ao certo onde começa uma coisa e termina outra, entrará no mais emaranhado labirinto. Provavelmente para não tirar conclusão alguma.
Aquele Querido Mês de Agosto é uma comédia musical, filmada com o olhar perspicaz habitual no realizador. E consegue sê-lo em todas as suas vertentes. E, ao mesmo tempo, ser muito mais do que isso...
O presente texto foi publicado no JL, em Agosto de 2008
Aquele Querido Mês de Agosto é agora editado em DVD

1 comentário:

Tiago Ramos disse...

E vai ser emitido na RTP2 este sábado!