sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Infância perdida

A Cara que mereces (DVD), de Miguel Gomes


«Tenho 30 anos e ainda me sinto uma criança», esta pode ser uma frasechave da primeira longa metragem de Miguel Gomes, A cara que mereces. Porque isto de se ser adulto não é fácil. Nem a entrada é automática como por vezes nos querem fazer crer aos 18 anos, com a maioridade legal. O que marca a passagem para a idade adulta? O direito ao voto e a possibilidade de ser preso? A independência económica? O casamento/ajuntamento? O primeiro filho?
A temática da infância/adolescência é comum a toda a filmografia de Miguel Gomes. Descritiva em Inventário de Natal, interrogativa em Entretanto e burlesca em Kalkitos. Em A Cara que Mereces a infância é o pano de fundo para falar da crise dos 30 anos. E que raio de crise é esta? Aos 40, possivelmente, inicia-se a despedida da juventude. Os 30 é o ponto de não retorno à infância. Ou melhor, é quando o indivíduo se apercebe que se tornou irreversivelmente adulto. Quando deixa mesmo de ter a cara que Deus lhe deu e passa a ter a cara que merece.
A Cara que Mereces está dividido em duas partes. A primeira, mais breve, poderia facilmente ser isolada e exibida como uma curta-metragem. Contudo, torna-se num preâmbulo essencial à compreensão da segunda, mais abstracta e semiológica.
O arranque do filme marca a sua toada, o universo mágico: a camioneta da carreira abre a porta na paragem, entra um marinheiro e sai um cowboy. Mas, logo trata de desmistificar a situação: Portugal não é propriamente uma terra de vaqueiros, e o indivíduo só está assim vestido porque é um educador de infância que vai a uma festa de disfarces. A magia, no entanto, está lá. E coloca, inevitavelmente, o filme numa fina linha de nylon que separa o real do fantástico.
Transpondo mesmo essa linha, através da música. Porque, na primeira parte, o filme é mesmo um musical, daqueles em que subitamente tudo pára e as personagens desatam a cantar, sob pretexto nenhum (e aqui uma palavra de apreço para a banda sonora com originais da autoria de Mariana Ricardo). Com estes ingredientes são criados momentos de sublime beleza, dignos de Fellini ou do Feiticeiro de Oz, como a caminhada à chuva do cowboy e da fada.
Na primeira parte, que se chama «Teatro», encontramos uma criança adulta, que faz 30 anos e recusa-se a crescer. O cowboy é todo feito de infantilidades e atrapalhações típicas da adolescência. Parece um daqueles miúdos que crescem desengonçados, que dominam mal o próprio corpo, que por onde passam semeiam o caos e, desesperadamente, procuram encontrar-se. E a acumulação de azares e trapalhices culmina num... sarampo.
Essa é a passagem para a segunda parte, que quem quiser pode entendê-la como um delírio provocado pela doença. Mas o mais importante é que é a entrada definitiva no mundo da fábula. E a história encantada que lhe serve de motivo é a da Branca de Neve e os Sete Anões. O tema, contudo, mantém-se: a passagem definitiva e irreversível para a idade adulta, aqui simbolizada pela entrada no quarto escuro.
Na segunda parte, chamada precisamente «Sarampo », não vemos uma única mulher (nem sequer a Branca de Neve). Isto porque, como é sabido, na infância e pré-adolescência cava-se um enorme fosso entre os sexos e o que interessou a Miguel Gomes foi o mundo masculino. As únicas mulheres aparecem descritas na impúdica Revista Tânia. De resto, é mais um delicioso retrato da infância, com jogos , canções, traquinices, brincadeiras de mau gosto, de «também ficas a apanhar!», «és o meu melhor amigo!», «primeiros! », «estás morto!», «aqui vou eu!»... E de contos, de histórias infantis tornadas realidade, mas também, de tentativas de organização, de desentendimentos, de regras, regras infringidas e os respectivos castigos.
Depois, enfrenta-se o medo, desfaz-se a magia, ignoram-se os conselhos, desobedece-se à proibição e entra-se finalmente no quarto escuro. Mas ainda resta a esperança: ou será que nunca mais jogaremos às escondidas?

Este texto foi publicado no JL, em 2006
A Cara que Mereces é agora editado em DVD

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